Le monde diplomatique / Caderno Brasil
Edição de outubro de 2007

Literatura de pai para filho

Leandro Oliveira

Mais do que uma história de filho doente, O filho eterno é uma bela reflexão sobre a paternidade, sobre ser escritor e sobre o momento político conturbado dos anos 1980

O trabalho de escritor pode conduzir a alguns caminhos difíceis. No oceano de assuntos possíveis para a composição de um romance, o mergulho pode produzir um grande número de sensações e descobertas. Em alguns casos, a descoberta pode ser terrível – por exemplo, um escritor que mergulha na personalidade de um genocida. Ao sair do oceano, o escritor pode se sentir pior, vendo em sua criação um retrato artístico que talvez seja difícil de encarar, afinal, previamente, ele reconhece que o terror de seu personagem não produzirá os melhores sentimentos nos leitores.

Mas não são somente personagens desumanos que podem causar perturbação. No caso de uma aproximação entre personagem e autor, expor fatos pessoais em uma prosa de ficção pode se tornar um modo cruel de espelhar-se. Despojar-se e procurar narrar acontecimentos pessoais por meio de um narrador pode produzir livros irregulares, pois a tentação de abandonar a ficção para tornar o texto apenas uma lista de lamentações e justificativas é algo que se verifica em boa parte das autobiografias. É, portanto, um terreno perigoso, que muitos escritores procuram evitar, às vezes delegando a tarefa a outro autor. Afinal, como escrever algo pessoal sem ser simplório ou pedante? Pior, como escrever fatos íntimos com um afastamento equilibrado, tornando o texto, de fato, uma ficção?

Essas são perguntas que aparecem quando lemos o livro O filho eterno, de Cristovão Tezza, publicado pela Editora Record, relato que é um mergulho num mundo íntimo, mas equilibrado pela ficção. Engana-se quem pensa que encontrará ali o autor contando a verdade, as memórias de sua vida. Há um afastamento, proposto pela construção da narração em terceira pessoa, que faz toda a diferença nos trechos mais difíceis. Vemos um desnudar de fatos pessoais – os desafios enfrentados por um pai e seu filho, que sofre de síndrome de Down –, trabalhados para serem apresentados ao leitor na forma de uma história.

Reflexão sobre a paternidade

O equilíbrio faz desse livro uma jóia de beleza e sensibilidade, algo muito positivo, apesar desses termos terem assumido um caráter tão negativo em nossos tempos. Um exemplo disso são os trechos iniciais, quando o narrador, ao receber o diagnóstico de que o filho possui a síndrome, imagina a possibilidade de vê-lo morrer logo. Há a delicadeza do pai, mas também o afastamento do narrador, o que permite uma confissão tão franca. À medida que o tempo avança e o personagem busca ajudas para o melhor desenvolvimento do filho, o sentimento inicial passa a se transformar, ao ponto de sentirmos também uma angústia terrível quando é contado o episódio em que o filho se perde. O sentimento do pai ultrapassa a história e é transmitido ao leitor. Passa-se a sentir empatia pelo personagem e somos envolvidos pela história de Felipe, o filho com síndrome de Down.

Mais do que uma história de filho doente, O filho eterno é uma bela reflexão sobre a paternidade, sobre ser escritor e sobre o momento político conturbado dos anos 1980. Vemos a persistência de um autor que acumula, em sua gaveta, cartas das editoras contendo avaliações negativas de suas obras, relembramos os absurdos sistemas de financiamento habitacional da era Sarney, além do amadurecimento de ponto de vista de um ser humano em seu papel de pai. Reflexões que poderiam facilmente se transformar em autocomiseração, dado o tema com forte apelo emocional, mas o texto foge disso.

O texto de Tezza é emotivo, mas não é daqueles que somente apelam para a emoção, utilizando artifícios batidos que os leitores mais experientes conhecem. O que há ali é a literatura madura de um escritor talentoso, sem dúvida um dos mais importantes escritores brasileiros contemporâneos.

Tezza e a literatura contemporânea

Aliás, com respeito aos escritores brasileiros contemporâneos, Tezza é um caso que poderia servir de diagnóstico dos leitores em relação à nossa atual literatura. Apesar de suas evidentes qualidades e das várias obras publicadas, ele não é um autor muito comentado. A falta de conhecimento sobre o autor é proporcional aos comentários que vemos de leitores, que dizem que hoje não se escreve nada que preste, que ninguém escreve como Machado na atualidade, essa conversa tola que vez por outra ainda ouvimos. O livro é, portanto, uma resposta enfática de que se produz, sim, na atualidade, uma literatura de grande qualidade e de que vale a pena acompanhar a cena literária contemporânea. Se você quiser conhecer mais o autor, a recomendação se estende também aos romances Trapo e O fotógrafo, outros dois excelentes livros.

Este último livro de Tezza, por fim, dá-nos uma sensação de satisfação por termos dedicado parte de nosso tempo à sua leitura. O mergulho que o autor faz em sua intimidade tem como resultado um livro que merece ser destacado. Um livro que faz o leitor se orgulhar por tê-lo lido. O “filho eterno” do título permanece em nossa recordação. Somente isso é motivo suficiente para que o autor, ao sair desse oceano da literatura, orgulhe-se por deixar suas páginas à disposição dos leitores.