O Globo - Caderno Prosa e Verso
Rio de Janeiro , 8 de setembro de 2007


Uma crônica do desamor paterno

Ronize Aline

Com linguagem corajosa, Tezza cria pai envergonhado de ter um filho com síndrome de Down

Há muito deixou-se de questionar o instinto maternal, esse pulsar - diriam, natural - de um ser em direção a outro que existe antes mesmo de a mulher dar à luz. Durante toda a gravidez, a mãe Já sente e ama o bebê. Mas e o Instinto paternal? Sem perceber de fato a criança durante a gestação, o pai costuma sentir esse pulsar após o nascimento. Antes disso, o filho é apenas uma idéia, cuja confirmação se dá no momento em que o toma nos braços e reconhece ali a continuidade de seus traços, de sua linhagem. É também quando todas as suas expectativas se encontram nesse pequeno ser que, já agora, o enche de orgulho e o transforma em "pai".

Mas, o que seria capaz de bloquear esse instinto? Em "O filho eterno", o novo romance de Cristovão Tezza, a vergonha é essa força que o afasta da paternidade. Vergonha de mostrar ao mundo que não foi capaz nem de fazer um filho "normal”, ele, um escritor que já carregava consigo outravergonha: a de ainda nãoter conseguido publicar um livro sequer. Tezza, que vive essa experiência de ter um filho com síndrome de Down, cria um alter ego no qual a crueldade e a cora­gem de expressar sua repulsa pela criança são as características dominantes.

Tezza empresta ao seu protagonista - que é o pai, não o filho - elementos autobiográficos, mas deixa entrever o dedo da criação literária. Como ele mesmo aponta: "Escrevendo, pode descobrir alguma coisa, mas sem confundir - isso o escritor percebeu logo - a vida e a escrita, entidades diferentes que devem manter uma relação respeitosa e não multo íntima. Só sou interessante se me transformo em es­crita...". Desconfia-se, portanto, que nesse acerto de contas com o passado Tezza possa ter exagerado no retrato que faz de si mesmo tornando-se, assim, mais interessante à literatura. Ou então, tal qual o poeta, "finge ser dor a dor que deveras sente".

O livro trata de dois pro­cessos de gestação: o desse "filho eterno" - porque ca­da dia é um eterno recomeço - e a de sua carreira de escritor, numa escolha de Sofia revisitada, já que essa criança e suas necessidades lhe roubam o tempo que deveria ser dedicado à literatura. Para esse pai, a gestação do filho se dá com a criança já fora do ventre materno, pois é preciso adequar essa crian­ça à idéia anteriormente formulada e achar um lugar para ele na sua vida. Logo ele, um escritor acostumado a dar nome às coisas, não con­segue nomear aquilo que deveria chamar de filho. "Talvez (isso ele não pensa) de fato a criança tenha de conquistar o seu direito de se tornar um filho".

A gestação da carreira vai sendo mostrada em flashbacks, como se a memória fosse o refúgio para escapar da peça que o destino lhe pregou. A vida ilegal na Alemanha e a experiência em comunidade quando adolescente são algumas das fugas que nos permitem conhecer algo além daquela brutalidade de senti­mentos, que prefere a morte do filho (esperança embasada em pesquisas que mostram que as crianças até então chamadas de "mongolóides" não costumam viver muito) a ter de carregar aquela prova do seu fracasso vida afora. Não é um livro sobre a relação pai-filho. É, antes, um livro sobre um homem lutando contra a idéia de se tornar pai daquele filho. Mas a criança vai crescendo apesar dessa recusa de afeto - que, suspeita-se tenha sido compensada pela mãe, já que no livro ela tem uma participação minima. "É preciso um certo esforço para amá-lo, ele pensa."

O inicio do livro surpreende (alguns diriam, choca) por desvelar sentimentos que, convencionou-se: deveriam permanecer velados. As palavras são tão rudes quanto os sentimentos e a coragem em deixá-las marcadas no papel é inquestionável. Em alguns momentos soa como uma expiação, como se a exposição pública aliviasse o peso da culpa. E, como um colcha de retalhos, o texto vai trazendo lembranças daqui, dali, mostrando que muitas vezes foi necessário achar espaço para a ternura nos scripts da vida.

A partir de determinado mo­mento, parece que o livro mimetiza um pouco o comportamento dessa "criança especial", que se apega à rotina, à falta de sur­presas, ao comportamento teatrallzado como forma de viver em sociedade. Não há mais a surpresa da linguagem nem a expectativa da situação. Mas o fôlego é retomado na parte final quando, após 25 anos, o pai delixa perceber, num misto de alivio e constrangimento, como esse menino já adulto e ainda criança se transformou no seu filho. Ou melhor, como ele se transformou no seu pai.

Ronize Aline é jornalista e professora da UniCarioca.

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