Gazeta do Povo
Caderno G - Curitiba, 21 de agosto de 2007


Felipe

“Com O filho eterno (Record, 2007), Cristovão Tezza renuncia às referências veladas e trata de forma direta da própria vida, inscrevendo abertamente a sua história num romance fadado ao sucesso.”

Miguel Sanches Neto

“O leitor não lê o romance, lê o romancista”, disse José Saramago tempos atrás. Esta afirmação deve deixar os teóricos da literatura em pânico. Sob a máscara da ficção, em maior ou menor grau, mora sempre um indivíduo de carne e osso e sangue e sonhos, a quem o leitor busca. O sentido imanente da obra de arte seria, portanto, uma falácia. Lemos o que de vivo e de comovente havia no autor e que passou para a ficção. Toda escrita literária é, assim, essencialmente autobiográfica, ainda quando fala de coisas e pessoas distantes de seu criador – pois mesmo aí ele se revela ao projetar-se em outra circunstância.

As obras de Cristovão Tezza, que inicialmente tendiam para a alegoria, passaram a se tornar ensaios ficcionais sobre a arte, não só a arte da palavra. Mas até seus romances mais elaborados, verdadeiras máquinas racionais, que funcionavam no terreno da ficção quase absoluta, escondiam no subsolo uma vida secreta. O autor, bem visível nos primeiros livros, ausentou-se nos mais recentes, mas eu o encontrava principalmente nos personagens que encarnavam o professor frustrado pela rotina ou o artista em atrito com o sistema, duas faces da identidade de Cristovão – professor para sobreviver e artista procurando um lugar no mundo. Eis o dilema central de sua obra.

Com O filho eterno (Record, 2007), Cristovão Tezza renuncia às referências veladas e trata de forma direta da própria vida, inscrevendo abertamente a sua história num romance fadado ao sucesso. Ele afirmava, durante a escrita, que este seria o livro da sua vida. E de fato é, e em vários sentidos. Trata de sua principal experiência – o nascimento e a criação de um filho com síndrome de Down. É um livro que projeta luz em toda a sua produção anterior, autenticando-a. E se constitui num lance de coragem, para uma pessoa que se assume como tímido, mestre em ocultar sua vida pessoal dos conhecidos, que não encontrava forma de tratar da deficiência do filho sem o e se expor a situações vexatórias: “ainda é incapaz de conversar com as pessoas sobre seu filho” (p.152). Com o romance, ele vence tudo isso para compor uma obra-prima em que a sinceridade é um caminho de descoberta.

Embora se valha da terceira pessoa do singular para se referir a si mesmo, ele deixa com os nomes reais os demais personagens, numa confiança no poder enunciador da literatura, que nomeia as coisas para que nos reconheçamos nelas – um poder que ele entende como vital, e que luta para desenvolver no filho. A palavra colada ao que ela representa.

O romance conta como o pai reage ao filho que põe abaixo suas pretensões de perfeição. Ele sonha, no início, com a morte prematura da criança, que lhe devolveria uma sensação de normalidade. Depois, diante da sobrevivência do menino, passa a prepará-lo para a superação das suas limitações, procurando todas as formas de tratamento, na ilusão de uma integração à sociedade, logo impossibilitada pelo crescimento do menino, que acaba indefinidamente numa escola especial. Por fim, o pai faz o caminho inverso: evita trazer o filho para um mundo que jamais o reconhecerá como um igual e passa a criar passagens para a experiência de tempo e de espaço da criança. A reta de chegada desta modificação é o romance, em que o filho se revela ao mundo diante da impossibilidade de o mundo se revelar ao filho. Inverte-se a vetorização neste deslocamento.

Quando o pai tenta explicar coisas banais do futebol ao filho – verdadeira paixão dele –, percebe a falência da linguagem: “as palavras usadas – profissional, atleta, adulto, regras, treinamento, contratação – todas vão caindo num balaio esotérico de referências inalcançáveis” (p.209). A linguagem não tem, para ele, sentido, não é semântica e abstrata a sua forma de relacionamento com a realidade, mas afetiva, direta e momentânea. Aos poucos, o filho vai aprendendo a se expressar pela linguagem das tintas, estimulado pelas aulas de pintura, continuando assim uma antiga vocação do pai, preterida em nome da literatura. É pela imagem e por impulsos que a criança eterna se comunica. Esta descoberta faz com que o pai trilhe o mesmo caminho, e se aproxime mais das coisas, renunciando à mediação excessiva empreendida pela intelectualização.

Uma outra modificação que o filho opera no pai é a sua visão de tempo. Como ele não dispõe de mecanismos neurológicos para diferenciar presente, passado e futuro, vive a sua infância sem fim num presente perene. O romance também segue esta temporalidade contínua. Oscila entre as experiências matinais e outras distantes, unindo num único tecido narrativo o passado do pai, suas lutas para afirmar-se como escritor, suas viagens, suas opções, e a vida com o filho. Tudo acontece num agora que aceita o acaso. O livro acaba justamente com esta idéia de que cabe também ao pai partilhar desta incerteza do hoje, sem uma noção nostálgica do passado nem a crença salvadora do futuro.

Deixando de ser um defeito que deve ser corrigido, o filho se afirma como via de acesso a uma outra experiência de tempo e espaço. A sua indiferença ao controle social leva o pai ao ato corajoso de tratar publicamente da doença, logo ele que não sabia nem como descrever o filho fugitivo: “Teria que achar as palavras certas para explicar, as pessoas não sabem – talvez dizer ‘você viu meu filho? Ele é um menino com problema’; ou ‘ele é meio bobo’; ou, ‘ele é deficiente mental’” (p.164). Uma das formas de ler o livro é acompanhando como a criança surge com o carimbo de mongolóide, essa palavra espinhenta, passa a um caso de mongolismo, expressão menos agressiva, depois para portador de síndrome de Down, para, finalmente, ser o próprio nome. Entre o anátema e o nome, um caminho de mais de duas décadas. Cristovão vence este percurso tornando tudo conhecido. Depois deste romance, seu filho será apenas o Felipe.