Estado de S.Paulo
Caderno 2
Sábado, 11 agosto de 2007


Escritores brasileiros estão voltando para casa

O Filho Eterno reflete a necessidade dos autores contemporâneos de pensar sobre relações filiais após a implosão da família

Fabrício Carpinejar

Os escritores brasileiros contemporâneos estão voltando para casa. Cíntia Moscovich desenha a simbiose entre filha e a tutela materna em Por Que Sou Gorda, Mamãe? (2006), Luiz Ruffato narra em O Inferno Provisório a cartografia do lar operário no interior de Minas, Michel Laub flagra o fantasma da separação dos pais em Segundo Tempo (2006) e Milton Hatoum refaz a parábola no Rio Negro de Caim e e Abel em Dois Irmãos (2000). Não é casualidade, há uma latência em entender o que seremos a partir das variações filiais.

Um dos melhores narradores do País, Cristóvão Tezza reestréia na Editora Record com o romance O Filho Eterno (224 págs., R$ 34), além da reedição de suas obras anteriores num abrangente projeto gráfico. Trapo, Aventuras Provisórias e O Fantasma da Infância estão circulando no selo com elegantes capas monocromáticas.

O Filho Eterno enfoca a relação de um pai com um filho portador de síndrome de Down. Assunto que foi tema de uma novela recente da Rede Globo, Páginas da Vida, de Manoel Carlos, e que é enredo de outros dois preciosos romances, Uma Questão Pessoal (Companhia das Letras, 2003), do japonês Kenzaburo Oe, Nobel de Literatura, e Nascer Duas Vezes (Companhia das Letras, 2002), do italiano Giuseppe Pontiggia.

Curioso é que nos três livros (Tezza, Oe e Pontiggia) o protagonista é um professor que precisa assumir sua vocação paterna com o nascimento de um filho deficiente. Talvez a figura do professor seja a mais próxima do escritor, um alter ego preferido, já que é uma deliciosa soma contraditória, talhada para ensinar e, de repente, obrigada a aprender. Em todos eles, ocorre a mesma pergunta: o que é normalidade?

Tezza produziu uma pequena obra-prima. Sua mais autobiográfica ficção, com referências diretas à sua privacidade, formação e aos inéditos do início literário. É um mergulho camicase no mais absoluto amor a uma criança. A narração em terceira pessoa torna o livro suportável, senão as lágrimas viriam embaralhar as letras.

Descortina o ingresso definitivo na fase adulta de um estudante de Letras, 28 anos, que vive de bicos como aulas de redação e correção de monografias. Mistura de ideologia e desajuste, o rapaz terá que digerir sua frustração diante do surgimento do bebê trissômico 21.

Uma das grandezas do volume é que não ocorre nenhuma omissão das etapas de aceitação da paternidade. Não há atenuantes e meios-termos. 'Ainda não existe um filho na sua vida; existe só um problema a ser resolvido.' A princípio, a culpa e a resistência. Em seguida, os exercícios de estimulação e a convivência. Por último, a simbiose plena e inadiável.

Desarma os preconceitos entrando neles, assumindo-os, conceituando a evolução de sua consciência e não censurando os medos mais primários e infantis (não se pode esquecer que estamos no fim da ditadura militar, nos anos 1980, em que a expressão usada para a síndrome de Down era 'mongolóide').

Logo no nascimento, o personagem imprime o inconformismo pela dificuldade. Não era um filho para exclamar, mas um filho para se perguntar. Sua mulher lamenta que estragou a vida dele, esperando que diga o contrário e ele não retruca. Aceita. Empreende uma romaria com especialistas para encontrar um erro na avaliação médica. Não encontra. Ao descobrir a pouca expectativa de vida com a deficiência, cogita a morte prematura do pequeno, para aliviar-se da responsabilidade. Quem seria capaz de declarar isso, de um modo tão corajoso, sincero e desconcertante? 'Jamais partilhou com a mulher a revelação libertadora.'

Enfrenta o dilema entre quem faz da diferença uma discriminação e de quem nega a diferença e exerce uma discriminação ainda mais grave.

O que Tezza indica é que o filho com a síndrome pode virar um filho privado, não um filho público, para passear, fofocar e ostentar sem dar explicações. Por receio da ausência de compreensão dos demais, transforma-se em segredo de família.

O Filho Eterno desmantela o tabu. A obra é o escritor andando publicamente com sua criança e emendando comunicação e intimidade. 'A afetividade é uma forma de compreensão.'

É de arrepiar a transformação gradual e consistente do pai, desde quando tira fotografias caçando os ângulos em que o filho ficará com a feição dita comum até a revelação de que é ele que está em treinamento. 'Sou eu que preciso de avaliação', confessa.

O filho Felipe vai demonstrando sua personalidade e esvaziando falsas ilusões. Antes o pai se defendia do filho, agora o pai defende o filho das adversidades, das censuras veladas da escola, que alega não ter 'conhecimento' para cuidar de uma educação diferenciada.

Não são poucas as epifanias. Uma delas é quando repara que a criança especial vive um presente absoluto. Todo olhar não é um regresso, porém um espanto da primeira vez. 'Como se cada instante da vida suprimisse o instante anterior.'

O pai encarna o menino. Rejeita seu ponto de vista etéreo para tomar uma posição calcada na experiência. A autocrítica pesada do começo ultrapassa a resignação e atinge o improviso da esperança. Da rejeição ao desespero de extraviar o filho, quando ele some do apartamento.

É do conflito que nasce a lucidez, a lembrar das palavras sobre o herói de Bakthin: 'Quanto mais forte a tensão, sempre maior será a clareza.'

Cristóvão Tezza poderia naufragar na pieguice, flagelação e orientação moral. Mantém o pique em praticamente o livro inteiro. Desacelera somente nos últimos dois capítulos, nos quais discursa mais do que narra e reprisa o companheirismo do pai com o filho num tom ensaístico.

Vale-se da sincronia entre o pensamento trepidante do personagem e a atmosfera tensa envolvendo a família (Felipe, mulher e a filha que nasce depois), sem nunca desautorizar a voz de comando do narrador. Contrapesa a ironia com o arrebatamento, a ebulição reflexiva com a objetividade. É um romance coeso, bem amarrado, onde a ação da subjetividade se ampara em fatos para abrir a casca das aparências.

Serve também como um diário de um escritor em formação, com duas dicas fundamentais. A recomendação de interromper o texto num bom momento, para manter a vontade de continuar imediatamente, e a de que ninguém está pedindo para o escritor escrever. É ele que criou sua necessidade e arcará com sua opção. 'O fracasso é coisa do autor.'

E as vitórias, como a do O Filho Eterno, parecem ser dadas de modo generoso ao leitor.


Fabrício Carpinejar é poeta e jornalista, autor de Meu Filho, Minha Filha (Bertrand Brasil, 2007)