Gazeta do Povo
Caderno G
Domingo, 6 de agosto de 2007

 

Uma questão pessoal

A relação de um pai com o filho downiano move a narrativa de O Filho Eterno, de Cristovão Tezza

por Irinêo Netto

“Nada do que não foi poderia ter sido.” Lógica e um tanto cruel, a frase aparece algumas vezes ao longo de O Filho Eterno, o novo e mais pessoal livro de Cristovão Tezza. Um romance “brutalmente biográfico” que narra a relação de um pai com seu primeiro filho, portador da Síndrome de Down.

Em uma frase: o livro do ano. Do tipo que precisa ser lido a qualquer custo, mais de uma vez, pelo maior número de leitores possível.

O protagonista, apresentado apenas como “ele”, é um escritor que vive em Curitiba, dedicado à vida acadêmica – meio a contragosto – e autor de obras como Trapo e Aventuras Provisórias. É um Cristovão Tezza ficcional.

O escritor nascido em Lages (SC) vive em Curitiba desde sempre e é professor da Universidade Federal do Paraná. Vinte e seis anos atrás, estava no quarto do hospital, ao lado da mulher, esperando para conhecer seu filho, nascido horas antes.

“Súbito, a porta se abre e entram os dois médicos, o pediatra e o obstetra, e um deles tem um pacote na mão. Estão surpreendentemente sérios, absurdamente sérios, pesados, para um momento tão feliz – parecem militares. Há umas dez pessoas no quarto, e a mãe está acordada. É uma entrada abrupta, até violenta – passos rápidos, decididos, cada um se dirige a um lado da cama, com o espaldar alto: a mãe vê o filho ser depositado diante dela ao modo de uma oferenda, mas ninguém sorri.”

A cena dá seqüência a uma série de descrições técnicas – o modo médico de dizer algo, avançando pelas margens – mostrando que o Felipe não era “normal”. Ele sofria do que, nos anos 80, era mais conhecido por “mongolismo”, um termo médico (e obtuso porque baseado nas características físicas dos mongóis) usado para se referir à doença definida pelo médico britânico John Langdon Down, em 1866.

O bebê downiano criou no pai uma crise que parecia inescapável e sem fim. “Ele recusava-se a ir adiante na linha do tempo; lutava por permanecer no segundo anterior à revelação, como um boi cabeceando no espaço estreito da fila do matadouro.” Quando, enfim, conseguia ir em frente, o passo seguinte era tão difícil quanto o anterior.

Intuição

Hoje, mesmo pronto para falar da relação com o filho, Tezza admite que só conseguiu escrever a partir do instante em que virou um personagem (leia entrevista na página 3). Daí sentiu que a escrita do livro foi quase intuitiva, como se o texto todo estivesse pronto na cabeça. Talvez por isso, ao contrário de outros trabalhos, O Filho Eterno teve poucas alterações da primeira versão até a final.

Por se aproximar das memórias e do ensaio, o romance intercala a vida íntima e profissional do personagem/Tezza – inclusive a experiência de trabalhar ilegalmente na Alemanha – com suas opiniões sobre assuntos diversos. Sobra para a ditadura militar, a economia brasileira e até para um senhor que teve o impulso infeliz de buzinar quando o pai estava parado em uma preferencial, o detonador de um de seus raros acessos de raiva (em um episódio nervoso, hilário e, ao mesmo tempo, muito humano).

Assombro

Diante de um tema comovente por si só, Tezza escreveu um texto livre de sentimentalismos e dramas fáceis. Existe a redenção, mas ela não é simples e não acontece de um dia para o outro.

O pai se assombra quando um incidente mostra a intensidade da ligação que tem com o filho. Homem dos livros, avesso a misticismos, racionaliza muito do que sente. Disseca, analisa e questiona. Aprende as limitações do filho com afinco científico e, sempre que olha para ele, parece ter consciência delas. Tempo depois, entende que “Quem precisa de normalidade é o pai, não os filhos”.

Aos poucos, a história mostra que o amor pelo Felipe e o afeto deste por todos são capazes de dobrar o pai turrão.

Entrevista

A eternidade e um livro

Autor evitou o tema “pai que tem um filho especial” até se sentir maduro para enfrentar a fera: ele mesmo

por Irinêo Netto

Cristovão Tezza tem 54 anos, uma gargalhada contagiante e um senso de humor que parece não se abalar com qualquer coisa. Há quase quatro décadas, na Alemanha, ganhando dinheiro na função de zelador de um hospital, ele e um colega não conseguiam sair do alojamento onde estavam e tiveram de pular pela janela. O detalhe é que a porta estava destrancada – e abria para o lado de fora. Eles insistiam em puxá-la e não tiveram destreza o suficiente para experimentar empurrá-la. “Dois sujeitos brutalizados pelo trabalho!”, lembrou Tezza, soltando outro “Rarará!” sonoro.

A entrevista com o autor aconteceu em dois meios (físico e virtual). Primeiro, na manhã da última quarta-feira, no seu apartamento, próximo ao prédio da Reitoria, onde trabalha. E, ao longo da semana, por e-mail. Dez entre dez escritores preferem responder por escrito. Tezza é generoso a ponto de falar, escrever e ainda se colocar à disposição para esclarecer qualquer dúvida que possa aparecer pelo caminho.

O autor diz que, graças ao livro novo, atingiu a maturidade literária. “Como se o romance O Filho Eterno, por conta própria, tivesse juntado todas as sensações e percepções que fui vivendo em duas décadas e meia na relação com o Felipe, e isso agora se traduzisse numa obra de ficção madura”, explica, citando o filho eterno em questão.

Caderno G – Você comentou que O Filho Eterno é o seu trabalho mais pessoal, aquele que o “liberou”. De que forma?

Cristovão Tezza – Eu sentia que o tema – um pai que tem um filho especial – era mais forte, difícil e poderoso do que os meus recursos de escritor, talvez justamente por ser uma questão pessoal. Como se esse evento da minha vida tivesse colocado todas as armadilhas em torno de mim para eu cair nelas. Fui me desviando por mais de 20 anos, para ficar em pé. Súbito, parece que me senti maduro para enfrentar a fera, que ao fim e ao cabo não era meu filho, mas eu mesmo. O Filho Eterno é a história dessa viagem. Era um livro que precisava ser escrito, e agora, finalmente, estou livre.

Poderia comentar também por que o considera um “atestado de maturidade literária”?

É que me deu a sensação, ao terminar, de que eu tinha escrito uma obra realmente completa; como se o romance O Filho Eterno, por conta própria, tivesse juntado todas as sensações e percepções que fui vivendo em duas décadas e meia na relação com o Felipe, e isso agora se traduzisse numa obra de ficção madura.

Embora seja um romance narrado na terceira pessoa, o livro é, nas suas palavras, “brutalmente biográfico”. Abordar um tema tão próximo pode ser, em alguma medida, desconfortável?

Sim. O mais difícil num romance é você estabelecer o lugar do narrador, onde ele está e o que ele vê, e colocar o mundo inteiro nessa perspectiva. É uma questão técnica, mas tem uma boa dose de intuição. No caso de O Filho Eterno, tratava-se basicamente de mim mesmo, de uma forma mais radical do que em qualquer outro romance meu. Eu não podia simplesmente trocar os nomes, modificar cosmeticamente algumas informações e fingir que não tinha nada a ver com aquilo. Comecei pensando num ensaio, num texto frio sobre a relação de um pai com o filho, mas percebi que isso não teria sentido. Esbocei uma primeira pessoa, mas fugi dela imediatamente. Quando comecei a me tratar por “ele”, o livro ganhou a dimensão de ficção, que é o que importa, e autonomia. Para o leitor que não me conhece, os aspectos factuais são irrelevantes. O que importa é o olhar romanesco, que em última instância relativiza tudo, coloca cada gesto e pensamento num tempo e num espaço específicos e intransferíveis. Além disso, ao criar o narrador do livro e fazer do pai um personagem, conquistei uma independência brutal, uma capacidade, ou uma coragem de dizer as coisas que eu jamais teria se falasse de mim mesmo. A linguagem do romance me deu o fundamental: liberdade.

No livro, não há qualquer referência explícita ao fato de você, assim como seu protagonista, ter um um filho downiano (o texto da orelha é sutil ao tratar do assunto). Como você resolveu esse embate entre o que revelar ou não?

Quando decidi escrever um romance, e não um ensaio ou uma “confissão”, a dimensão de “verdade biográfica” perdeu completamente a importância. Usei a mim mesmo, e aspectos da história da minha vida e do meu filho, com aquela “amoralidade” bruta do escritor atrás de um bom material romanesco, venha lá de onde venha. O escritor não pode ter medo de seus temas. Já basta o medo de pisar em ovos na vida real, que afinal é a norma civilizada do dia-a-dia. Mas a literatura tem de abrir essas portas, ou não terá função nenhuma. A “terceira pessoa” me protegeu, e também me liberou, digamos, da “responsabilidade histórica”, da informação “verdadeira”. Memória, invenção e fatos reais se transfiguraram todos na composição do livro. O aspecto biográfico do escritor, insisto, não tem relevância – é o que é, uma realidade biográfica, e só isso, vivendo sua vida como todo mundo.

É possível dividir sua obra em títulos cerebrais (O Fotógrafo é um deles) e emocionais (como Trapo e, agora, O Filho Eterno). Essas duas personalidades literárias convivem bem uma com a outra?

Acho que sim. Há uma espécie de compensação, ou a intensificação de um aspecto sobre outro de tempos em tempos. Alguns livros meus são mesmo mais “emocionais” – Trapo, Juliano Pavollini, O Filho Eterno –, e outros mais frios, como A Suavidade do Vento, Breve Espaço entre Cor e Sombra e mesmo O Fotógrafo, como você diz. É uma coisa sobre a qual eu não tenho muito controle. Em O Fantasma da Infância, que a Record está reeditando agora, essa espécie de divisão está presente na própria composição do livro: o André Devinne “cabeça quente” e o André Devinne “frio e calculista” vão caminhando lado a lado, em duas narrativas distintas – mas quem escreve a narrativa “fria” é o “cabeça quente”... Já me disseram que a universidade e o trabalho teórico acentuaram o meu lado “cerebral”, mas não acredito. É só temperamento mesmo. E eu gosto de teoria.

Kenzaburo Oe (Uma Questão Pessoal) e Giuseppe Pontiggia (Nascer Duas Vezes) são exemplos de autores que escreveram sobre a relação com filhos que não eram considerados “normais” (aplico as mesmas aspas usadas pelo italiano), questionando inclusive a noção que se tem de “normal”. Esses autores tiveram algum impacto sobre você?

Sim. Lembro que li esses dois belos livros quase ao mesmo tempo, em 2003 – foram leituras marcantes. Uma Questão Pessoal estrutura-se como ficção, inclusive com as marcas do tempo, um romance com o espírito “anos 60”; e o Nascer Duas Vezes é um ensaio, um texto objetivo sobre a relação com o filho especial, já num contexto mais contemporâneo. Acho que O Filho Eterno, como texto e narrativa, seguiu uma terceira via, por assim dizer – uma estrutura de ficção que se abre em vários momentos quase que objetivamente à reflexão.

Você já tem idéia de que caminho seguir em um próximo livro?

Escrever um livro para mim é um processo longo – começa por uma vaga idéia que vai criando corpo e alma, depois ganha o papel, uma primeira frase, e daí em diante há uma turbulenta convivência que vai de um a dois anos; em seguida, fecha-se numa composição completa, vai para a editora, que dá sempre uma primeira medida do que está ali, cai num certo limbo até ser publicado, e finalmente sai para a rua. Estou exatamente nesse momento, sentindo as primeiras leituras, alguns momentos de felicidade, outros de incerteza, e enfim o livro vira um estranho completo e ganha vida própria, o que deve acontecer em breve. Daí, sim, vou começar a pensar no próximo livro. Já tenho alguns outros fantasmas rondando minha cabeça.