Cristovão Tezza é um escritor contemporâneo: a matéria de sua obra de mais ou menos 30 anos está por aí, ao nosso alcance. Ele também parece ser um escritor no sentido mais clássico do termo, voltado para um universo particular, escrevendo à mão, dando aulas de língua portuguesa na universidade para sustentar a carreira artística e senhor de uma escrita elegante e eficaz, em que cada palavra ocupa o lugar certo e uma frase puxa a outra sem solavancos. Aos 55 anos, premiado, dez romances na bagagem e reconhecimento crítico, Tezza é um daqueles raros autores que conseguiram atravessar as fronteiras do Sul do país com a força de uma expressão urbana, nada regional. Sem contar a sombra de um gênio criador como Dalton Trevisan, que paira, misteriosa, sobre todos os que escolhem a literatura em Curitiba. Esta pode ser a imagem pública do catarinense de Lages, adotado pela capital paranaense desde os sete anos e crítico orgulhoso da cidade e do mundo como só os curitibanos sabem ser.
Mas o novo romance de Tezza, "O Filho Eterno", espana toda e qualquer frieza de rodapé biográfico. Nele, de forma surpreendente, o autor se atira de corpo e alma a uma exposição emocional delicada e tocante, que tem tudo para afetar seus próximos livros.
"O Filho Eterno" é o livro da vida de Tezza. No sentido literal e no sentido literário. Ali, ele está inteiro, biográfica e artisticamente falando, mesmo que seja narrado na terceira pessoa. "Comecei a projetar mentalmente esse livro como ensaio, mas bastou escrever a primeira página para sentir que seria impossível. Tinha de ser uma ficção", diz.
"O Filho Eterno" é a história de um pai que, em 1980, tem um filho com síndrome de Down. Simples assim. Mas Tezza revira a própria vida do avesso, para contar como caminhou na direção de aceitar tudo o que esse filho trouxe com ele. Escrevê-lo significou escarafunchar os sonhos artísticos e a dura realidade do jovem pai, ex-hippie, sustentado pela mulher, lutando para sobreviver na cidade adotada, e lutando para situar o filho dentro dos contornos do mundo. "Criei uma 'persona' narrativa sobre fatos concretos da minha biografia", diz o autor. Tal procedimento poderia significar qualquer coisa, mas, no caso de "O Filho Eterno", os golpes de realidade que aparecem aqui e ali eletrizam a narrativa, de forma que fica difícil deixá-la de lado. Para os leitores mais familiarizados com o primeiro livro de grande projeção de Tezza, "Trapo", publicado em 1988, a primeira menção do título deste romance poderá ter o efeito de um choque. É quando Tezza deixa claro quem é quem na sua pungente narrativa.
"Trapo", por sinal, teve uma trajetória tão marcante que vale a pena contar. O romance já estava escrito desde 1982, mas só saiu seis anos depois, pela editora Brasiliense. "Ser publicado por uma grande editora do Rio ou São Paulo era um processo difícil e demorado", diz o escritor. "Ainda mais para quem estava fora do eixo, como sempre foi o meu caso." Mas nem tudo foi alegria: quando, finalmente, o livro saiu, Tezza teve que enfrentar umna greve nos correios antes de abri-lo em casa. E a surpresa ruim estava no posfácio, incluido pela editora, que temia lançar um autor jovem de quem ninguém nunca tinha ouvido falar. A assinatura do texto era do poeta Paulo Leminski, que, movido pelo célebre espírito curitibano cultivado na Boca Maldita, o lugar no centro da cidade de onde se fala mal de tudo e de todos, detonou o livro. Foi um caso extravagante e único de posfácio negativo, em que Leminski dizia que a idéia era boa, mas o livro, fraco. Na verdade, o poeta não gostou de se ver espelhado no personagem principal de "Trapo", o próprio. Coisa em que, aliás, o autor não havia pensado.
Se a ficção já trouxe problemas para Tezza, a realidade ficcionalizada de "O Filho Eterno" não fica muito atrás em matéria de aflição. "Jamais escrevi antes uma linha sobre esse tema, meu filho ou a síndrome de Down, ou mesmo sobre assuntos correlatos", diz o escritor. "O problema do Felipe jamais havia entrado no horizonte da minha literatura. É como se eu soubesse que ainda não estava pronto." E escrever essa história também significou optar por um trajeto menos seguro, ao contrário dos outros romances, em que ele sempre sabia o que iria acontecer no capítulo seguinte. Deixou-se levar por aquilo que chama de "intuição controlada". O livro quase que se escreveu sozinho. Vinte e tantos anos depois do nascimento de Felipe, Tezza afirma: "Parece que já estava tudo maduro na minha cabeça".
A maturidade do escritor Cristovão Tezza foi se desenhando no tempo pesado da ditadura. Ele perdeu o pai ainda na infância (e falar em paternidade no novo romance significa tocar nesse tipo de ferida). Viveu em comunidade ainda adolescente, no interior da Paraná, como parte de um grupo de teatro. Esteve na Marinha Mercante, movido pelo sonho aventuresco de escritor nos moldes de um Joseph Conrad. Foi para a Europa, apenas com a passagem de ida, e morou em Coimbra no ano (1975) da Revolução dos Cravos. Foi relojoeiro. Tudo isso está nas linhas de "O Filho Eterno", como parte da grande aventura íntima que o narrador se permitiu empreender. Algo que já deixou marcas indeléveis na sua literatura. "Eu me sinto mais livre como escritor, como alguém que soltou amarras. Uma sensação boa", ele diz. Escrever o livro parece ter sido parte de um processo de aceitação de Curitiba, a cidade que, próxima da idéia de Dalton Trevisan, dá a impressão de cultivar um gênio a cada esquina. "Cheguei em Curitiba aos 7 anos e briguei com a cidade durante uns 30, 40 anos, às vezes mais, às vezes menos", ele diz. "Mas a cidade venceu: de dez anos para cá, sinto-me um curitibano integral e não consigo me imaginar em nenhuma outra cidade. Nós nos entendemos, finalmente. Passei a ter aquela relação visceral com o espaço da cidade que não pode mais ser substituída." O último livro do escritor sinaliza esta aceitação em cada uma de suas justas e delicadas linhas: Curitiba é a cidade de Felipe, "O Filho Eterno" de Cristovão Tezza.