Revista BRAVO!
Agosto de 2007

Cromossomo 21

Em tom duramente confessional, Cristovão Tezza expõe as fraquezas de um homem diante do filho com síndrome de Down

por André Nigri

Há algum tema que possa não interessar à literatura? Cristovão Tezza, escritor catarinense radicado em Curitiba, achava que sim. Foram necessárias quase três décadas para ele mudar de opinião e escrever o que talvez seja seu romance mais autobiográfico, em torno da doença de seu filho, a síndrome de Down. Em O Filho Eterno, ela irrompe com uma força e tensão raramente vistas na ficção brasileira contemporânea.

O narrador/protagonista é um jovem aspirante a escritor de 28 anos, "alguém provisório",
vivendo às custas da mulher que vai dar à luz ao primeiro filho do casal. Um tanto arrogante, sempre à margem do "sistema" (há uma linhagem de personagens de Tezza nessa situação), ele pensa que o filho será uma espécie de prova definitiva de suas qualidades. Mas a criança que chega, na "manhã mais brutal da vida dele", traz as características da trissomia do cromossomo 21, a chamada síndrome de Down — conhecida nos anos 80, época em que o personagem vive, como "mongolismo".

Um dos traços delineadores da ficção de Tezza é o personagem partido, ciente e dilacerado pela defasagem entre os seus desejos e a realidade. Em O Filho Eterno, essa cisão é ainda mais brutal porque vazada em um tom confessional que não admite vacilos ou mentiras, ainda que o autor nos alerte, na epígrafe do escritor austríaco Thomas Bernhard, da impossibilidade de dizer a verdade total.

DOENÇA SOCIAL

Pior do que se ver afogado em uma vertigem do filho que "não é nada", é o mecanismo
social que apavora o pai. "A vergonha é uma das mais poderosas máquinas de enquadramento social que existem." E são os outros que ele teme, o ter de dar explicações sobre a criança "anormal". A fuga será escrever: "Fingir que não está acontecendo nada, e escrever". Mas o que se esboça como retirada revela-se antes um mergulho na própria história do autor, um recuo até a infância, quando perde o pai aos 3 anos, atravessando os 28 anos que o separam do nascimento de Felipe.

Como é característica de Tezza, o todo é feito de pequenas peças, lembranças, detalhes,
opiniões que se contradizem. Ao ativar esse painel memorialístico, no qual se descortina também o Brasil do fim do período militar até nossos dias, o pai passa a reconhecer o filho como um outro e a reconhecer a si mesmo. Obcecado por dar uma forma à vida, o narrador por fim se acha como um taxidermista às avessas.

Assistindo a uma partida do Atlético Paranaense ao lado do filho, torcedor fanático do time, o narrador resume: "O jogo começa mais uma vez. Nenhum dos dois tem a mínima idéia de como vai acabar, e isso é muito bom".