Há algum tema que possa não interessar à literatura? Cristovão Tezza, escritor catarinense radicado em Curitiba, achava que sim. Foram necessárias quase três décadas para ele mudar de opinião e escrever o que talvez seja seu romance mais autobiográfico, em torno da doença de seu filho, a síndrome de Down. Em O Filho Eterno, ela irrompe com uma força e tensão raramente vistas na ficção brasileira contemporânea.
O narrador/protagonista é um jovem aspirante a escritor de 28 anos, "alguém provisório",
vivendo às custas da mulher que vai dar à luz ao primeiro filho do casal. Um tanto arrogante, sempre à margem do "sistema" (há uma linhagem de personagens de Tezza
nessa situação), ele pensa que o filho será uma espécie de prova definitiva de suas qualidades. Mas a criança que chega, na "manhã mais brutal da vida dele", traz as características da trissomia do cromossomo 21, a chamada síndrome de Down — conhecida nos anos 80, época em que o personagem vive, como "mongolismo".
Um dos traços delineadores da ficção de Tezza é o personagem partido, ciente e dilacerado pela defasagem entre os seus desejos e a realidade. Em O Filho Eterno, essa cisão é ainda mais brutal porque vazada em um tom confessional que não admite vacilos ou mentiras, ainda que o autor nos alerte, na epígrafe do escritor austríaco Thomas Bernhard, da impossibilidade de dizer a verdade total.
DOENÇA SOCIAL
Pior do que se ver afogado em uma vertigem do filho que "não é nada", é o mecanismo
social que apavora o pai. "A vergonha é uma das mais poderosas máquinas de enquadramento social que existem." E são os outros que ele teme, o ter de dar explicações sobre a criança "anormal". A fuga será escrever: "Fingir que não está acontecendo nada, e escrever". Mas o que se esboça como retirada revela-se antes um mergulho na própria história do autor, um recuo até a infância, quando perde o pai aos 3 anos, atravessando os 28 anos que o separam do nascimento de Felipe.
Como é característica de Tezza, o todo é feito de pequenas peças, lembranças, detalhes,
opiniões que se contradizem. Ao ativar esse painel memorialístico, no qual se descortina também o Brasil do fim do período militar até nossos dias, o pai passa a reconhecer o filho como um outro e a reconhecer a si mesmo. Obcecado por dar uma forma à vida, o narrador por fim se acha como um taxidermista às avessas.
Assistindo a uma partida do Atlético Paranaense ao lado do filho, torcedor fanático
do time, o narrador resume: "O jogo começa mais uma vez. Nenhum dos dois tem a mínima idéia de como vai acabar, e isso é muito bom".