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DIARIO CATARINENSE
Florianópolis, 4 de março de 1995
O UNIVERSO NA PROVÍNCIA
REGINA CARVALHO
Coordenadora do curso de Letras da UFSC
Entre Lages e Curitiba, entre a relojoaria em Antonina e os subterrâneos
de um hospital alemão, entre as experiências teatrais
de Rio Apa e o bem comportado mundo acadêmico brasileiro
vai-se estruturando - talvez fosse mais exato dizer que veio se
plasmando - o universo ficcional de Cristovão Tezza, um
dos maiores escritores brasileiros da atualidade. Nascido na cidade
de Lages, em Santa Catarina, mas tendo se mudado para Curitiba
aos sete anos, quando da morte do pai, Cristovão consegue
reunir em sua obra o melhor destes dois mundos.
Se Dalton Trevisan é o contista de Curitiba, Cristovão
Tezza é, sem dúvida, o seu romancista. Tendo começado
a carreira literária nos poemas da adolescência (alguns
deles reproduzidos em Trapo), Cristovão escreveu
contos (A Cidade Inventada) e até uma novela
infanto-juvenil (Gran Circo das Américas). Foi com
o romance O Terrorista Lírico que encontrou sua
linguagem, e se definiu por ela - é um autor de narrativa
longa, naquele prazer de montar cada lance, de pensar cada personagem
e cada ação, previsíveis no excelente enxadrista
que sempre foi. E neste jogo lúdico e sofrido ao mesmo
tempo, foram saindo Ensaio da Paixão, Aventuras
Provisónas, Juliano Pavollini, A Suavidade do Vento
e, recentemente, O Fantasma da Infância (Record,
1994). E no prelo da editora Rocco, devendo ser lançado
em breve, Uma Noite em Curitiba.
O Fantasma da Infância é, sem dúvida,
a melhor coisa que Cristovão Tezza já escreveu:
a mais madura, a mais elaborada, a mais bem estruturada, a mais
genial. E não será com isso pensar que os outros
romances sejam obras menores, muito pelo contrário. Mas
é que neste último livro publicadoo autor se superou
- e nisto acredita também a critica nacional, que tem se
desmanchado em elogios ao romance, do Oiapoque ao Chuí.
Para que não se perca o impacto da leitura, vou destacar
apenas três aspectos de O Fantasma da Infância
- a dupla narrativa, o ambiente e o nome dos personagens.
Ao batizar seus personagens, um autor pode usar nomes que já
representem de alguma forma o destino que lhes será atribuído,
ou sua personalidade; pelo contrário, pode brincar com
os nomes, e uma personagem lamentosa e chata, por exemplo, pode
receber o nome de Letícia, alegria em latim. Mas Tezza
se diverte com uma elaboração bem mais sofisticada,
cheia de alusões cinematográficas, repleta de ironias
e duplos sentidos. O protagonista se chama André Devinne;
os dois enes do sobrenome remetem ao francês, e, ao mesmo
tempo, a um subterfúgio bem brasileiro de dobrar letras
do nome da família, para lhe atribuir tradição.
Tirando um dos enes, teremos devine, divino em inglês, um
contraponto para quem se chama André, que vem do grego
andreas, que significa "homem". (E nas lembranças
de infância me vem um gordo fantasma, um comediante americano
chamado Andy Devine...) Pois, como se vê, o protagonista
de O Fantasma da lnfância recebe um nome que soa como se
fosse falso, e pode ser decodificado em seus elementos como se
fosse.falso, flutua entre duas narrativas, dois espaços,
dois tempos, duas vidas ficcionais e uma real (se encararmos como
realidade uma outra obra ficciona]), pois é ao mesmo tempo
o que escreve e o que é escrito, criador e criatura, e
então seu nome deixa de ser uma ironia e, ironicamente,
passa a ser da mais perfeita adequação.
A personagem feminina de uma das narrativas - a que é produzida
pelo Devinne seqüestrado - se chama Laura, um nome a que
o cinema atribuiu uma carga enorme de beleza, sensualidade, charme;
mas a personagem feminina da outra narrativa é Vera...
O único nome com cargas de real - e de muita crueldade
- é Odair, o pobre, verdadeiro, fodido fantasma da infância.
Seqüestrado por Doutor Cid (e Cid significa "senhor"),
Devinne tem que escrever um romance para poder ser libertado -
e por aqui se encadeiani as duas narrativas, a que narra o seqüestro
de Devinne, e a outra, a que Devinne narra, esta em terceira pessoa,
aquela em primeira, artifício já batido, mas eficiente
sempre. Alguns críticos têm catalogado uma de verdadeira,
e a outra de real, optando por uma delas, seguindo a orientação
sedutora do narrador enquanto elemento institucional do romance.
No entanto - e é aqui que entra a magistralidade de Tezza
- uma leitura mais atenta vai deitar por terra todos os indícios,
e quanto mais cuidadosamente se reler O Fantasma da Infância,
menos certeza se vai ter de qual é a narrativa real, e
qual não o é. Longe, porém, de armar um romance
intelectualizado e dificil, como o tem feito alguns autores, Cristovão
Tezza montou uma narrativa fluida, interessante, cheia de humor
e ironia, agradabilíssima de se acompanhar.
Para os moradores de Florianópolis, um atrativo a mais
na ambientação do romance: a segunda narrativa se
passa na Lagoa da Conceição, onde Devinne, fugindo
de seu passado literário, vem buscar a paz de seu espírito.
Há relação entre a paz do local e a escapada
da angústia? E uma boa pergunta.
O Fantasma da Infância consegue de tal forma satisfazer
nossas expectativas do que seja um bom romance, que mal podemos
esperar por Uma Noite em Curitiba - na segurança de que
a obra de Cristovão Tezza, em tendo atingido de forma tão
admirável a sua maturidade, só pode nos reservar
leituras ainda mais magistrais.
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