ZERO HORA
Porto Alegre, 7 de fevereiro de 1995


Entrevista: Cristovão Tezza

Em busca do universal na aldeia curitibana

JERÔNIMO TEIXEIRA
Enviado Especial/Curitiba

O prédio é localizado no alto de uma colina, e o apartamento é no 19º andar. Da janela do amplo e iluminado living, avista-se boa parte da civilizada Curitiba. Cristovão Tezza, porém, encontra uma pequena desvantagem no deslumbramento cotidiano desta paisagem: "E ruim ver o local de trabalho de onde a gente mora", brinca. O local de trabalho, bem próximo, é a Universidade Federal do Paraná, onde Tezza ensina Língua Portuguesa. Mas o local de trabalho também pode ser a própria casa, onde o escritor, nascido há 42 anos em Lajes, Santa Catarina, está criando seu nono romance, 'Uma Noite em Curitiba'. O autor de 'Trapo' e 'A Suavidade do Vento' recebeu Zero Hora para falar de seu mais recente lançamento, 'O Fantasma da Infância'.

Zero Hora - Em uma das duas histórias paralelas de O Fantasma da Infância, há uma referência ao período Collor. Nas duas histórias, o cinismo vence. O senhor queria retratar a amoralidade política da época?

Cristovão Tezza - Não. Inclusive, acho que sou um escritor moralista. Aquela referência, de passagem, ao período Collor - e eu nem cito o nome -foi uma coisa que entrou intuitivamente no livro. Eu sou um romancista intuitivo. Era um clima que encaixava na lógica interna do livro.

ZH - Então não houve uma intenção deliberada de apresentar um retrato do país?

Tezza - Não. Isso aconteceu, e eu acho que é natural que aconteça. Sou
um escritor muito atento, é meu próprio temperamento, de pegar uma coisa que está no ar. Meus personagens são socializados. Eles vivem o mundo concreto, do dia-a-dia, do cotidiano. Este registro realista é forte no que eu escrevo.

ZH - Apesar deste "registro realista", um dos temas de O Fantasma da Infância é o processo de criação de um livro...

Tezza - É. Eu gosto disso. Eu sei que é uma coisa muito perigosa - quer dizer, você pode escorregar facilmente em um joguinho de armar, que é uma coisa muito batida pelo pós-modernismo (eu recuso este termo). A Suavidade do Vento trabalha com isso também, mas a minha preocupação é criar uma vitalidade no livro para que este jogo de armar não seja a coisa mais importante. Meus livros não estão a serviço de uma "sacada" de linguagem. Agora, acho o ato de escrever fascinante. Não tem nada de autobiográfico no que eu escrevo, mas também passei pelo processo de reconhecimento do mundo pela escrita. Você, quando põe a mão na massa na escrita, nunca mais é o mesmo. Há um processo de autotransformação.

ZH - Em O Fantasma da Infância, há referências circunstanciais a datas e locais. O senhor não teme que elas possam deixar o livro "datado"?

Tezza - Eu perdi completamente este medo. Faço um paralelo com meu primeiro livro, A Cidade Inventada, de contos, que escrevi aí pelos 25 anos, nos anos 70. Não há absolutamente nada datado. As cidades são fantásticas, o mundo está em ruínas, os personagens vêm de lugar nenhum, não há nenhuma referência geográfica e histórica em que você possa se situar. E, no fim, eu senti que a minha linguagem não era esta, eu estava na verdade produzindo um pastiche. Uma das dificuldades do escritor é descobrir a própria linguagem. Eu fui tateando nisso aí. Depois de A Cidade Inventada, eu dei um salto para uma narrativa absolutamente linear e realista, que foi Gran Circo das Amériicas. Depois fiz O Terrorista Lírico, que é uma coisa meio fantástica, mas na qual a cidade começa a entrar, até chegar a Trapo, que eu achei que era o meu registro, a minha linguagem. É aquela velha história: a aldeia é o ponto de universalidade possível.

ZH - O senhor se sente plenamente realizado neste processo de chegar a uma linguagem própria?

Tezza - Do ponto de vista técnico, eu sinto que hoje eu tenho uma segurança muito maior do que há dez anos. Mas este é o aspecto mais superficial. A questão mesmo é maturidade, a visão de mundo que vai amadurecendo de livro a livro. As duas coisas estão mais ou menos imbricadas. Acho que não, não estou satisfeito. Não estou preocupado em escrever "a grande obra" (risos). Há um certo imaginário na crítica brasileira de que está faltando o grande romance brasileiro, e às vezes, obcecadas por este imaginário, as pessoas deixam de ver o que está sendo de fato produzido. Digamos que eu sou um escritor poliédrico. Eu vejo a minha obra como um conjunto de estacas que estão lá - Juliano Pavollini, A Suavidade do Vento, Trapo, O Fantasma da Infância, o próximo que vem, Uma Noite em Curitiba. Acho que em cada livro há um amadurecimento.

ZH - Em O Fantasma da Infância, o personagem Cid, chefe do tráfico de drogas, faz a apologia do urbanismo curitibano. O senhor acredita que a propalada urbanização-modelo de Curitiba seja só uma aparência?

Tezza - Obviamente é um recurso irônico, pôr aquilo na boca de um canalha Eu acho que, independentemente do valor urbanístico de Curitiba, que é excepcional e indiscutível, há uma questão ideológica. Poderíamos dizer a mesma coisa de Munique, quando Karl Valentin fez aquelas peças de teatro ironizando a ordem da Bavária. Muito do elogio curitibano como um discurso ideológico oficial - Curitiba é uma cidade extremamente oficial, você não tem muitas vozes fora do canal oficial - acaba sendo uma maneira de você fazer uma representação como o doutor Cid faz. Aqui é bom não porque é bom, mas porque não tem o "resto". Este lixo do resto do Brasil aqui não entra! (risos) Mas isto é incidental no livro, talvez para uma melhor definição do personagem André Devinne. Ele é mais desajustado ainda por estar naquele espaço: um cara completamente desagregado num espaço que é o símbolo da ordem.




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