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O ESTADO DE S. PAULO
ESPECIAL DOMINGO
São Paulo, 4 de setembro de 1994
Romance tem duplo enredo com um só protagonista
Cristovão Tezza publica sua nona obra
de ficção e
merece volume na 'Série Paranaenses'
LÊNIA MÁRCIA MONGELLI
Especial para o Estado
O novo romance de Cristovão Tezza, O
Fantasma da Infância, está sendo lançado
agora, e o mínimo que a crítica pode reconhecer
é que a carreira do escritor vai transcorrendo de vento
em popa - justiça feita a um labor que principiou incansável
em 1979, com Gran Circo das Américas (Editora Brasiliense),
e já se estende por nove obras de ficção.
Sem contar os trabalhos acadêmicos, pois Tezza é
também professor da Universidade Federal do Paraná,
a que deve, por exemplo, o livro didático Prática
de Texto para Nossos Estudantes (Editora Vozes), em parceria
com Carlos Alberto Faraco. A qualidade dessa produção,
louvada nacionalmente, reservou ao artista um lugar na coleção
chamada Série Paranaenses, com que a Editora da UFPR tem
pretendido destacar as letras estaduais.
Há aí informações biobiliográficas
essenciais para a interpretação de um universo romanesco
cuja densidade se acentua a cada publicação, a par
do adestramento na depuração da linguagem, sempre
mais próxima daquela simplicidade sofisticada e arduamente
perseguida. Na longa entrevista concedida ao amigo Faraco, Tezza
diz da importância que teve em sua formação
a experiência teatral, como integrante, de 1968 a. 1970,
do Centro Capela de Artes Populares, dirigido por W. Rio Apa,
onde foi desde iluminador de montagens até autor de várias
peças. Não há como não divisar os
ecos de tais interesses, hoje mais ou menos laterais, em romances
como Trapo (1988, Brasiliense), tido por marco na trajetória
ficcional de Tezza, ou como Juliano Pavollini (1989, Record):
tanto Trapo quanto Juliano são personagens "dramaticamente"
concebidas, que usam o ato de escrever como recurso de auto-reconhecimento,
pois só se projetando no papel ganham alguma consistência
duas vidas fragmentadas. O máximo da "encenação"
está em A Suavidade do Vento (1991, Record), muito
significativamente dividido em partes, à moda de marcação
cenográfica: Prólogo, Primeiro Ato, Entreato, Segundo
Ato e Cortina contam a história de úm infeliz professor
provinciano, Josilei Maria Matôzo, cuja única distração
é inventar "atores" que "corporificam' e/ou
"espelham" suas próprias frustrações
- a ponto de o leitor perder de vista, pirandelianamente, quem
é o criador e quem é a criatura.
A técnica da "teatralização" -
que às vezes resvala para certos excessos comprometedores
da espontaneidade - tem-se colocado a serviço de uma impressionante
coesão temática, centrada no exame da subjetividade
humana. Mas não a das camadas superficiais, que se traduz
pela lógica dos fatos ou reduz a eles sua imediata significação;
pelo contrário, os seres de Tezza são movidos por
impulsos sempre obscuros, insuspeitados e via de regra opostos
a atitudes volitivas. No melhor estilo de Camus (ou de alguns
escritores portugueses como José Rodrigues Miguéis
e Branquinho da Fonseca), as consciências sossobram por
entre ambigüidades, fazendo colidir violentamente a intenção
e o ato, com resultados desastrosos para os destinos individuais
(solidão, prisão, morte), a que subjazem causas
sociais e familiares que vão da instabilidade profissional
à falta de amor. Vida dupla freqüentemente e, por
extensão, duplicidade de enredo (um achado!), como se a
mesma pessoa tivesse existências paralelas, de dificil e/ou
impossível harmonização. Daí o "drama".
Quando o veio parece prestes a se esgotar, Cristovão Tezza
surpreende-nos como este O Fantasma da Infância,
de título intencionalmente banal, que insiste na mesma
direção dos demais romances e consegue, não
obstante, ser original. As dramatis personae retornam, agora sob
o nome suposto (pseudônimo?) de André Devinne, conforme
parece ter-se escondido nebulosamente o antigo Juliano Pavollini
da obra homônima. E o leitor tem de novo duas histórias
- ambas com trama pollcialesca, cheia de suspense, tão
ao gosto do autor - que só se interligam na pessoa do protagonista:
em uma, André Devinne é o bem sucedido advogado-assessor
de um Secretário em elevado cargó público,
casado com Laura e pai de Julia, que vê sua tranqüilidade
subitamente ameaçada pelo reaparecimento de Odair, velho
companheiro de prisão e de passado enterrado sob sete chaves,
com roubos e crimes de morte; em outra, André é
um escritor em decadência, falido e abandonado por Laura,
cuja solidão é repentinamente preenchida por um
misterioso Dr. Cid, milionário do submundo das drogas e
dos "desmanches" de carros, que o seqüestra sem
explicação e lhe dá a oportunidade de escrever
sua biografia de ricaço do comércio marginal. O
epílogo dos dois enredos é, no mínimo, estranho:
no primeiro, André Devinne livra-se de Odair matando-o
e atirando-o num poço no fundo do quintal; no segundo,
foge do despótico Dr. Cid, levando-lhe o dinheiro oferecido
pela secretária Vera, para começarem, ele e ela,
nova vida.
Até certa altura da obra, cujos capítulos se alternam
sistematicamente entre os dois filões, com várias
vozes narrativas (inclusive a palavra lírica de Laura),
nossa reação é de perplexidade: qual a intenção
de Cristovão Tezza ao nos presentear com fábulas
que pecam por um absurdo grotescamente ingênuo, para não
dizer de mau gosto? A quem serve esse Dr. Cid irreal, com seu
linguajar de escroque intelectualizado, limítrofe das histórias
em quadrinhos ou dos folhetins televisivos? De tal forma ele destoa,
a princípio, da concepção geral do romance,
que acaba se sobressaindo aos demais e oferecendo a primeira pista
para a decifração do enigma, num golpe de mestre
do ficcionista.
Na realidade, tudo provém de um cínico André
Devinne, que se desdobra em dois por força de certas circunstâncias
limitadoras, ou melhor, castradoras (os "fantasmas da infância"?),
de acentuado matiz psiquiátrico. O caráter doentio
desse entrecruzamento de personalidades, sugerido nos interstícios
da narração ou por diálogos dispersos, culmina
na perda total da identidade, a ponto de não se saber qual
dos dois Andrés é o real. Na sua cabeça conturbada,
um herói surge para compensar o outro, substituindo-se
mutuamente num processo indefinido e caótico, como se a
dispersão interior rompesse perigosamente as barreiras
entre verdade e fantasia. No que parece configuração
de lúcida loucura, o esquemático Dr. Cid pode ser
tanto o bandido quanto o médico que cuida do pobre André,
miseravelmente crucificado por suas grandes perdas.
Se considerarmos que tudo isso é contado em tom de blague,
numa linguagem que mescla muito bem a simp1icidade e o artificiosismo,
além do esplêndido jogo das "vozes" a camuflar
a certeira análise da condição humana, temos
confirmada a rara coerência com que Cristovão Tezza
vem construindo sua ascensão literária. Já
é tempo de deixar de vê-lo como escritor "paranaense",
ou, como têm insistido, "curitibano"; seu "regionalismo",
se existe, é mero pano de fundo.
Lênia Márcia Mongelli
é professora de Literatura Portuguesa na USP e
autora de "A Estética da Ilustração"
(Editora Atlas)
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