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JORNAL DO BRASIL
- IDÉIAS/LIVROS
Rio de Janeiro, 15 de outubro de 1994
O romancista de Curitiba
Wilson Martins
Cristovão Tezza é autor de uma
pequena obra-prima, escrita com sabedoria e mistério
Embora escrevendo e publicando desde 1979, é
somente três anos mais tarde que Cristovão Tezza
assume finalmente, com Trapo, o lugar que até então
estava vago na literatura paranaense: o de um romancista com categoria
nacional. Levando a originalidade ao ponto de nem mesmo nascer
no Paraná (que só veio a conhecer aos 7 anos), sua
biografia nada tem tampouco de convencional, pasando por um itinerário
que acabou por reconduzi-lo a Curitiba e ao trabalho regular de
escritor, depois de viver, nas suas palavras, o "sonho romântico
da marginalidade" e de ter sido "fortemente marcado"
pelos movimentos estudantis dos anos 60.
Outra influência determinante nesse trajeto foi a de Wilson
Rio Apa, espírito místico e rebelde sem causa, guru
intelectual de pequenos grupos de teatro e "vida natural"
no litoral paranaense. Essa, diz ele, foi uma "fase ótima"
de sua vida:
"A comunidade de Rio Apa era de fato um projeto existencial,
uma atividade coletiva em que tudo era discutido em conjunto.
O Rio Apa conseguia aglutinar um grande número de 'deserdados'
que acabavam encontrando lá em Antonina algum sentido de
vida. O teatro era tanto literatura como filosofia e terapêutica,
exatamente no espírito dos anos 60 e 70. O barbudo era
uma liderança muito forte, como ainda hoje é, com
alguns toques messiânicos que davam segurança àquela
troupe de perdidos... Além disso, sempre tivemos humor,
um certo humor corrosivo, bastante saudável, que contrabalançava
a seriedade às vezes excessiva do projeto riapeano. A convivência
com essa relativa marginalidade, com aquela anarquia meio patriarcal
sustentada pelo 'velho barbudo', me deu um certo olhar sobre o
mundo que está presente em toda a minha literatura. Além
disso, a convivência diária com o escritor Rio Apa,
nossas conversas, dúvidas, projetos, nossa solidariedade
comunitária, meu aprendizado numa época em que se
absorve tudo, tudo isso foi tão forte que já faz
parte inseparável de mim - mesmo quando o tempo se encarregou
de me dar um rumo próprio" (v. Cristovão
Tezza. Série paranaense nº 5. Curitiba. Universidade
Federal do Paraná, 1994).
O "escritor Rio Apa"? De fato, ele tentou, a princípio,
a carreira literária, com resultados, a meu ver, inconclusivos,
mas sempre é interessante que haja exercido sobre o espírito
de Cristovão Tezza uma influência, creio eu, mais
genérica do que específica.
Contudo, A suavidade do vento (1991) pode ser um fruto
recessivo daquelas origens metafísicas. Com Trapo
e Juliano Pavollini (1989), ele firmou a sua identidade
como romancista de Curitiba como Joyce foi o romancista de Dublin
e, em perspectivas nacionais, os correspodentes Assis Brasil no
Rio Grande do Sul, João Ubaldo Ribeiro na Bahia e Josué
Montello no Maranhão. "Eu sinto que Curitiba tem uma
atmosfera diferente, mas só consigo traduzi-la na ficção.
Posso dizer que devo muito das eventuais qualidades do que escrevo
a esse impalpável universo curitibano, que não se
mostra mas é muito forte (...). Curiosamente, é
um mundo mais mental que físico. O espaço urbano
que tem se tornado a marca nacional de modernidade abriga uma
população fortemente conservadora, um contraste
que considero literariamente muito rico" (Op. cit.).
Ele confessa uma incapacidade por assim dizer orgânica para
o conto (o que estabelece qualquer coisa como uma divisão
espontânea de trabalho, se não de território,
na literatura paranaense...), embora não resistisse à
tentação de publicar um deles em edição
fora de comércio (A primeira noite de liberdade.
Curitiba: Buquinista, 1994). Com O fantasma da infância
(Rio: Record, 1994), ele construiu um romance "em abismo",
como foi moda dizer por algumas semanas, na qual duas narrativas
se conjugam, intercruzam e mutuamente se completam, ao mesmo tempo
em que se desmentem entre si. Sem dar a chave do enigma, o texto
não permite que o leitor perceba qual delas é "realista"
e qual delas é "onírica". É uma
pequena obra-prima de arte literária, escrita com sabedoria
e mistério, ou seja, a fórmula primordial do romance.
Aqui se percebe, para quem a conhece, aquela "atmosfera"
curitibana, inclusive nos costumes, matéria privilegiada
da mitologia romanesca.
Nessa Curitiba, que ele caracteriza como "fortemente oficial",
Cristovão Tezza, como Dalton Trevisan, escreve sem provincianismos
a literatura não-oficial, indiferente aos lugares-comuns
temáticos e ufanísticos e às banalidades
estilísticas. É, de fato, a cidade que já
coroou um poeta em litúrgica cerimônia helênica
na Ilha de Ilusão, onde todos os participantes se apresentaram
vestidos a caráter, envoltos em clâmides esvoaçantes
(um deles contou-me que os mosquitos do local devoravam-lhes as
canelas). Mas, é preciso refrear os sarcasmos incompreensivos:
a coroação de Emiliano Perneta em 1911 como Príncipe
dos Poetas apenas repetia consagração semelhante
conferida quatro anos antes a Olavo Bilac em dimensões
nacionais.
O que ocorreu em Curitiba depois disso foi uma parada no tempo:
a literatura local imobilizou os seus ponteiros naquele momento
prestigioso e só tomou conhecimento do Modernismo tardiamente
para chacotas fáceis. A partir de então, as letras
paranaenses cristalizaram-se em literatura acadêmica (no
próprio e no figurado), entrando em processo de progressiva
desatualização mental. Daí a solidão
intelectual de Curitiba até os anos 40: a cidade e sua
literatura não tinham peso específico, situando-se,
como escrevu um dos seus melhores espíritos, na "retaguarda
característica dos incaracterísticos". Claro,
não se trata de recuperar o já agora obsoleto Modernismo
dos anos 20 e 30. Cabe, sim, hoje como sempre, escrever a literatura
não-oficial, que, por paradoxo, assegura a sobrevivência
das literaturas oficiais.
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