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GAZETA DO POVO
Curitiba, 20 de outubro de 1994
A DUPLA VIDA DE ANDRÉ DEVINNE
Miguel Sanches Neto
Cristovão Tezza, com o seu mais recente romance, O
Fantasma da Infância (Record, 1994), conseguiu uma proeza.
Superou aquele que era o seu mais bem elaborado livro, A Suavidade
do Vento. A cada novo romance, Cristovão torna a arte
de escrever mais difícil, pois consegue sempre ultrapassar
o anterior. Se o autor sofre com isto, nós, os seus leitores,
saímos ganhando.
Com um deliberado projeto de ser o romancista de Curitiba, o autor
traz uma característica já notória deste
que é o contista da cidade (Dalton Trevisan). Embora com
trajetórias bem diferenciadas, os dois ficcionistas se
aproximam através da obsessão pela radiografia de
um universo definido. No romance deste ano, Tezza retoma sua temática,
seu espaço e recursos que já apareceram em outros
livros. Isto revela um escritor que não se entrega às
exigências dos modismos e que está convicto de que
a única literatura autêntica é aquela fundada
nos fantasmas interiores de quem escreve.
Fiel, antes de tudo, a si mesmo, Tezza mói e remói
os abismos entre os projetos de um passado (temporalmente localizado
nos anos 70) e os descaminhos do presente. Esta demarcação
de um período da vida brasileira está aliada a um
espaço também ele bem definido: o eixo Paraná-Santa
Catarina. O Fantasma da Infância, em seu duplo desenvolvimento,
se passa paralelamente em Curitiba e Florianópolis. Lembrando
que o autor tem uma "dupla nacionalidade", nascido em
Lajes, adotou a capÏtal paranaense, percebemos que também
esta escolha espacial faz parte do seu desejo de autenticidade.
O presente romance não é uma novidade completa.
Ainda bem! Ele retrabalha vários aspectós dos livros
anteriores. Encontramos aqui um protagonista (André Devinne)
acossado pelo fracasso. Traído e abandonado pela mulher,
escritor desconhecido que tem que sobreviver como digitador de
anúncios em jornal, morador de um apartamento sombrio,
ele tenta se iludir com a sua condição. Já
conhecíamos de outros romances seus (vide Trapo
e A Suavidade do Vento) estas crises existenciais que buscam
no escrever uma forma de libertação. O drama de
Devinne é que ele não consegue produzir nada. Até
que surge um anúncio procurando um escritor e, prevendo
um servicinho lucrativo, ele entra em contato com um certo Doutor
Cid, que o prende numa mansão do Jardim Social. Devinne
é reduzido a nada pelo seu seqüestrador, que quer
que escreva um livro. Mas não diz sobre o quê. A
reclusão acaba deixando Devinne, depois de um período
de acomodação à nova vida, totalmente à
vontade para produzir um romance. Mas só percebemos tudo
isso depois da metade do livro. Enquanto isso, temos que acompanhar
uma outra história, de um outro Devinne, este, ex-marginal
e agora político em Florianópolis, que vê
a sua vida em perigo devido ao reencontro com um amigo de infância,
o ex-presidiário Odair. Casado com uma pintora (Laura),
este Devinne vive uma falsa identidade, seu verdadeiro nome é
Juliano (que, em outro livro de Cristovão, Juliano Pavollini,
assassinara sua tia adotiva), e quer sufocar seu passado, que
pode acabar com uma carreira em franca ascensão. Odair
é o fantasma da infância, é a sua sombra,
que tem que ser tolerado em sua casa. Pobre e oportunista, Odair
quer tirar vantagem da situação. Devinne vai dar
um fim no fantasma, mas o mais importante nesta história
é o clima de perigo e de tensão que substitui a
vida alegre e sem problemas que este falso Devinne vive.
Esta dupla existência de André só fica clara
no momento que percebemos que um é ficcional. O verdadeiro
Devinne, preso na casa do Doutór Cid, um milionário
corrupto, está escrevendo uma espécie de roman à
clef, através do qual ele tenta passar a limpo a sua vida.
Num certo sentido, o Dr. Cid também é o fantasma
da infância deste Devinne verídico, porque conhece
a sua vida íntima, foi amigo de seu pai, e destrói
a couraça que protegia o escritor frustrado e pretensioso.
O seqüestro, que tem um sentido meio rocambolesco, pode também
ter uma significação mais ampla, que transcende
o enredo. É só na solidão mais completa,
longe das preocupações rotineiras, do burburinho
das ruas, que o escritor pode se dedicar a este outro mundo que
é o da ficção. Escrever se torna então
uma opção de isolamento, de rompimento com o mundo.
Devinne não escreve apenas a história de seu duplo,
ele a vive. Dando, inclusive, o nome de sua ex-mulher à
esposa do seu personagem.
A estrutura do romance é pois caracterizada por duas histórias
paralelas que se encontram nos últimos capítulos
do livro. O desfecho do seqüestro beira ao non sense. Há
um parentesco evidente com o romance policial. A história,
que tem como pano de fundo a queda do ex-presidente Collor, acaba
com a perda da invulnerabilidade de Cid, que fazia parte do esquema
da corrupção, e com a traição de sua
secretária que, apaixonada por Devinne, liberta-o e ambos,
com o dinheiro do empresário, fogem rumo à Espanha.
A outra história, a que estava sendo escrita pelo recluso,
fica sem final. Por isso a última frase do livro está
incompleta. Laura, que escreve um diário, nem chega a concluir
seu pensamento: "Se Flávio estivesse aqui ia dizer
que".
O recurso do romance no romance, exigindo uma dupla narrativa,
a princípio enigmática, possibilita a Cristovão
jogar com a curiosidade do leitor, prendendo-o ao texto. É
bom que se diga, no entanto, que no livro o desfecho do enredo
não é o mais importante. Deve-se buscar nos comentários,
nas discussões, nas reflexões silenciosas dos personagens
o melhor de sua literatura. A leitura horizontal, em Cristovão,
é secundária. O que mais conta são as possibilidades
de leitura vertical.
O título do livro salienta aquilo que falamos a respeito
das coordenadas temporais da obra mais recente de Tezza. Seus
personagens vivem um presente sempre atormentado pelo passado.
O desejo de exorcizar os seus fantasmas é que faz com que
André Devinne escreva a história do seu duplo. E
isso vale também para Cristovão. Para ele, escrever
é antes de tudo uma maneira de pôr para fora seus
fantasmas, de enfrentá-los, como faz Matoso de A Suavidade
do Vento. Cada novo livro é uma nova batalha contra
estes fantasmas. Assim, sua obra vai assumindo contornos bem nítidos,
centrada nesta luta incessante, e irrompe no mapa da literatura
nacional para demarcar o seu território, desvelando-o a
cada obra.
Esta tensão entre o presente onde impera o modus vivendi
capitalista, que o autor consegue plasmar de forma feliz, e o
passado underground, faz com que seus personagens sejam dilacerados
por dúvidas, remorsos, culpa e fracassos. Nenhum escritor
na ficção brasileira atual trabalha de maneira tão
contundente esta mudança de orientações sociais
como Cristovão. Ele está fazendo um balanço
das cicatrizes de toda uma geração que floresceu
nos anos 70. Literatura ética, que devasta sonhos e pesadelos
daqueles jovens que encontraram no ato de escrever a única
possibilidade viável de se rebelar contra o autoritarismo,
a obra de Tezza (que tematiza a criação literária
como uma saída) é hoje um memorial da passagem dos
"anos loucos" para os dias atuais.
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