CORREIO BRAZILIENSE
Brasília, 28 de novembro de 1994


TRAMA SURREAL

Regina Dalcastagnè
Especial para o Correio

De um lado, um escritor em confronto com sua própria insegurança; do outro, um homem bem sucedido que precisa destruir o passado para manter viva a farsa do presente.

O Fantasma da Infância, novo romance do paranaense (embora nascido em Santa Catarina) Cristovão Tezza, expõe a angústia de dois homens diante de uma situação limite - momento em que a identidade de cada um deles, arduamente construída ao longo dos anos, é posta à prova.
André Devinne e André Devinne - os dois homens têm o mesmo nome - são figuras amedrontadas, apavoradas ante as circunstâncias que vão se impondo, exigindo uma resposta que eles não podem dar.

Um é o escritor fracassado, que perdeu a mulher e o filho e trabalha como redator de classificados num jornal qualquer. O outro é assessor de um deputado, tem uma bela casa, uma bela mulher e uma bela filha, apesar do feio passado.
As duas histórias correm paralelas ao longo do livro, em capítulos que se alternam. Na verdade, o segundo André Devinne é personagem do primeiro. Surrealisticamente seqüestrado por um traficante, auto-intitulado "empresário de negócios alternativos", o escritor acaba aproveitando o tempo livre e as acomodações que nunca teve para produzir um novo romance.

Biografia - É aí que surge o seu contraponto - o Devinne bem-sucedido, um homem que tem tudo o que queria da vida, menos o passado. Esse passado, materializado na figura de um conhecido de outros tempos, que reaparece de repente impondo sua presença em troca do silêncio, põe em risco a frágil biografia que Devinne criou para si. O pavor que ele sente diante do eminente desmoronamento de sua identidade beira a tragédia.

Autor experiente, com nove livros publicados, Tezza captura a curiosidade de seu leitor. Como nos antigos folhetins, em que o final da cada capítulo alimentava a expectativa para o seguinte, O Fantasma da Infância vai emaranhando o leitor, que precisa saber o que acontecerá adiante.

Mas Cristovão Tezza não é apenas um competente fabricante de armadilhas: é também experimentado artífice de personagens. Seus protagonistas são terrivelmente humanos, ao ponto de serem quase irritantes. Medrosos, angustiados, preguiçosos, incoerentes - definitivamente, não são heróis. Deles, o leitor só pode esperar conflitos, nunca atos de bravura ou de grandeza. Quando agem, é porque estão sendo empurrados pelas circunstâncias.
Por isso os dois Devinnes vão igualmente se abandonando à escravidão, se acomodando até onde podem como traficante metido à besta e com o conhecido abusado e inconveniente. A relação entre dominado e dominador em cada uma das histórias é mais complexa do que aparenta.

O evidente conflito é matizado pela dependência mútua entre eles - o bandido tem que continuar lendo a história que o outro escreve, e o "amigo de infância" precisa se integrar na boa vida do antigo companheiro.

Sujeito estúpido - Isso fica evidente, sobretudo, na convivência que se estabelece entre o Devinne-bem-sucedido e seu amigo de infância, o mendigo e ex-presidiário Odair.

Bem instalado, com uma mulher artista e amigos cultos, ele se vê obrigado a hospedar e apresentar aos seus conhecidos um sujeito grosseiro e um tanto estúpido. Mas o desconforto é igual para Odair, que não sabe se portar nas rodas de "gente flna", que não fica à vontade nem mesmo no banheiro da casa do amigo.

Personagem mais bem construída do livro, Odair mantém em relação a seu hospedeiro um coquetel de emoções, que inclui amizade, rancor, inveja e, claro, o sentimento do poder que exerce sobre ele pelo simples fato de conhecer seu passado.
A trama paralela - que envolve o traficante dr. Cid e o Devinne-escritor - corre menos desenvolta. Seu ponto de partida rocambolesco não é inteiramente feliz e os monólogos do criminoso, sobre a importância de suas atividades ilegais na economia e na política do país, são em geral um pouco longos. A arrogância do dr. Cid é, no entanto, um eficiente contraponto para a insegurança do escritor, que desce às profundezas da humilhação durante o cativeiro.

Pavollini - A estrutura de O Fantasma da Infância, sofisticada em si mesma -com seus dos mundos; flccional e "real", e diferentes vozes se alternando dentro das tramas paralelos - é complicada por um fator adicional. O leitor é logo informado que o Devinne bem-sucedido, na verdade, se chama Juliano Pavollini. Evidentemente, mudou de identidade ao enterrar o passado. Ora, Juliano Pavollini é personagem-título de um dos romances de Cristovão Tezza.

Para o leitor, fica estabelecido um quebra-cabeças. Existem dois Andrés Devinnes, Juliano Pavollini, personagem de outro escritor, Cristovão Tezza. Será que também o Devinne-escritor foi um dia Pavollini (possibilidade que é aberta pela leitura do romance anterior)? Ou, da mesma forma que Pavollini tornou-se o Devinne-personagem, foi Tezza quem virou o Devinne-escritor?

O Fantasma da Infância não se preocupa em dar uma resposta "certa" para esse tipo de indagação. (Aliás, nem é necessário ler antes o Juliano Pavollini para desfrutar o livro.)
Com o romance, Tezza volta a mostrar que é possível fazer ficção de qualidade, consciente dos problemas do oficio, sem abrir mão da leitura prazerosa e envolvente. Este é o grande mérito de sua literatura.



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