JORNAL DA TARDE
CADERNO DE SÁBADO
São Paulo, 27 de agosto de 1994


TEZZA DESBRAVA O INFERNO DA MEMÓRIA

André Seffrin

Depois da publicação de Trapo, em 1988, o nome de Cristovão Tezza rompeu as fronteiras do Paraná, seu Estado por adoção (ele é catarinense de Lages radicado em Curitiba), levantando a sua obra desta espécie de limbo que é publicar fora do eixo Rio/São Paulo.

Tendo estreado em fins da década de setenta com A cidade Inventada, ainda publicaria dois livros na capital paranaense: O Terrorista Lírico e Ensaio da Paixão. Exceção feita a Gran Circo das Américas, publicava por editoras pequenas (hoje extintas) que o mantinham nessa marginalidade editorial que parece presidir a vida da maioria dos escritores brasileiros da atualidade. Com Trapo, e mais ainda com o aparecimento de Juliano Pavollini (em 1989, ano também de Aventuras Provisórias), Tezza não seria mais considerado como um simples romancista do Paraná, mas enfim e merecidamente entre os melhores do país.

Esquadrinhador de almas

A Suavidade do Vento, patrocínio da Bolsa Vitae, é de 1991. Agora é a vez de O Fantasma da Infância, uma espécie de continuação de Juliano Pavollini, com as vantagens e desvantagens que este fato prenuncia.

Tezza é o criador de uma Curitiba mítica que, entretanto, nada se parece à outra nossa conhecida Curitiba dos mistérios. Menos do espaço geográfico da cidade o ficcionista é um esquadrinhador de almas, e particularmente, um esquadrinhador da alma de um escritor (seu alter-ego talvez), pesquisador da sua substância e aí se dando aos malabarismos ficcionais peculiares ao seu temperamento.

Substância é uma palavra muito sua neste novo livro. O Fantasma da Infância retoma Juliano Pavollini, o personagem, e Juliano agora não se chama mais Juliano, mas André Devinne, na sua vida nova e na mesma busca desesperada de redenção. Juliano revive o assédio da memória, personificado em Odair, o fantasma da infância - que também pode ser o medo, a mentira, uma vida de mentira. Nessas perspectivas, este novo livro é uma repetição - e a palavra é esta - substancial do anterior. Novamente é a obsessão e o pavor da memória fragmentada - "é uma fumaça a memória", diário de Laura (p.72) - que se ordena para uma remissão final.

Tecnicamente os dois romances quase nada têm em comum. Em O Fantasma da Infância é o contraponto (de ambientes, de vozes, de pontos de vista) que estrutura a narrativa fundada nesse mesmo motivo essencial que os identifica, que é a memória, esse fantasma da memória. E o inferno é a memória. Auto-complacência, auto-piedade, níveis sonambúlicos de consciência, estados limite, onde o escritor exercita a sua crueldade, onde a sua ironia passeia uma lâmina insidiosa sobre o humano. "Velocidades extremas na alma", diria o poeta.

Viagens do espírito

O Fantasma da Infância trouxe de Juliano Pavollini esta herança medular, e de A Suavidade do Vento (romance extremamente lógico) ele carregou o fantasma de urna técnica levada perigosamente ao clímax. Era chegada a hora de uma mudança de pele, para a qual Tezza vinha preparado, e que O Fantasma da Infância apenas adia. Assim, encarado numa visão de conjunto, é um livro malogrado.

Juliano Pavollini, como personagem, esgotara a sua natureza no primeiro livro, que, por assim dizer, comportara a medida de sua memória Este seu resgate não é apenas uma repetição digamos, temática, mas uma sobrevida que não se sustenta e se dilui. Uma diluição que poderá se tomar estratégica, diga-se a favor do escritor, que aqui de novo se dá às discussões que o obsediam, quase todas de ordem literária.

O desafio de outra fase se anuncia, chance quem sabe de ultrapassar certos limites impostos. Acredito que o autor esteja preparado para esta guinada, que vai certamente encontrá-lo em plena maturidade criativa. O resto fica por conta das inefáveis viagens do espírito. E Cristovão Tezza é, mais do que ninguém, senhor delas.





voltar