JORNAL DO BRASIL
Rio de Janeiro, 22 de maio de 1999

OUTRA ILHA CHEIA DE SEUS DEMÔNIOS

LUÍZA LOBO

ENSAIO DA PAIXÃO - Cristovão Tezza. Rocco, 256 páginas, R$ 29

Cristovão Tezza é autor de seis romances, entre os quais este Ensaio da Paixão, prêmio Cruz e Souza em 1982. Seu último romance, Breve Espaço entre Cor e Sombra, também recebeu um prêmio, o Machado de Assis, como melhor romance de 1998. Nascido em Lages, Santa Catarina, é atualmente professor no Departamento de Lingüística na Universidade Federal do Paraná.

A ilha é o foco principal de interesse do autor catarinense neste Ensaio da Paixão. A vida numa ilha sempre foi um tema que exerceu fascínio sobre poetas e romancistas, por suas características paradisíacas, de utopia, de exílio, de liberdade possível e mesmo de concentração num trabalho. Os visitantes da ilha, situada com certeza na costa do Estado natal do autor, realmente se concentram na esperança de um trabalho comum: a montagem de uma Paixão de Cristo sob a direção de uma figura semimítica e profética, o Isaías. Mas aqui, a ilha é um catalizador das piores emoções humanas, ao contrário das utopias que se esboçam nas ilhas de Homero ou Camões.

Talvez levado pela sua experiência no grupo de teatro liderado por W. Rio Apa, do qual participou no Paraná e Santa Catarina, na década de 1970, o autor nos mostra o lado mais cruel, cínico e machista da paixão - ou seria o jogo do poder e domínio sobre o outro?
A investida do Exército neste paraíso tropical, habitado por pessoas vistas radicalmente como anjos e demônios, representa a eclosão de uma forma final de super-ego repressivo que só vem se somar às dificuldades já encontradas entre os jovens que passam as férias na ilha. Ao contrário do Senhor das moscas (Lord of the Flies), de William Golding, em que a ilha é um pano de fundo para o aprendizado de relacionamento entre jovens sobreviventes de um acidente aéreo, ou mesmo do clássico Robinson Crusoe, de Daniel Defoe, em que a cultura é enaltecida, embora a partir de um modelo eurocêntrico, aqui estamos mais perto do conteúdo onírico da Ilha dos Demônios, de Diná Silveira de Queirós. Chega-se a afirmar que a ilha é o produto do sonho de cada um. Um sonho que termina como pesadelo.

Um dos temas mais freqüentes de discussão entre os visitantes da ilha é o problema da arte, em que os envolvidos se defrontam com questões metafísicas. Enéas, o poeta frustrado e cínico, que desejaria exercer a arte maior bilaquiana, tem como seu alvo predileto um autor de renome nacional, que desavisadamente chega à ilha em companhia de sua bela, rica e fútil mulher. Suas acusações têm como objetivo mostrar a função social da arte e acusar Antonio de ser cooptado pelo sistema - à época da narrativa, a ditadura da década de 1970.
Ensaio da paixão é um laboratório de artistas que não chegam a realizar o seu sonho de encenar a Paixão de Cristo. As mulheres não saem ilesas deste processo. São acusadas de imorais, são xingadas, e se mostram desprovidas de qualquer inteligência - Hellen, a mulher do escritor, é apenas o exemplo limite disso. Raramente têm algo interessante a acrescentar na discussão, são vistas como objetos sexuais e quase sempre se tornam vítimas afetivas e sexuais dos homens, sempre infiéis, traiçoeiros e cruéis na sua poligamia. Pablo conclui que ninguém as obrigou a fazer o que as condena a seu destino.
Alguns recursos de realismo mágico inseridos na narrativa, acentuando os aspectos de anjos ou demônios de cada um dos personagens que atuam como profetas da paixão não chegam a amenizar o tom acirrado das discussões, que acentua a impressão de laboratório da palavra dramática entre os atores e que impulsiona o livro, da primeira à última página. O enredo e os personagens de Ensaio da paixão são um vívido retrato da sociedade em crise da década de 1970, que o autor soube bem recriar

Luíza Lobo é ensaísta, contista, tradutora e professora da Faculdade de Letras da UFRJ. Seus últimos livros são Crítica sem juízo e Sexameron, novelas sobre casamentos.



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