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O GLOBO - PROSA &
VERSO
Rio de Janeiro, 17 de abril de 1999
MEMÓRIA DOS ANOS 70 EM CLIMA TEATRAL
Autor catarinense lança nova versão de "Ensaio
da Paixão", romance criado no ardor da juventude
Entrevista: Cristovão Tezza
Elizabeth Orsini
Um místico que fala com Deus, um demônio
disfarçado em publicitário, iogues que levitam.
São assim os personagens que povoam uma ilha no Sul do
Brasil liderada por um profeta. Este é o cenário
de "Ensaio da paixão", livro favorito de Cristovão
Tezza e que será lançado dia 24, às 16h30m,
no estande da Rocco.
- Neste "Ensaio", o humor tem um toque de brutalidade,
como se fosse impossível qualquer relação
humana saudável. A saída é o riso demolidor
- diz Tezza.
O GLOBO: Nesse livro você trabalha
o humor de forma especial. O humor é uma chave de sua obra?
CRISTOVÃO TEZZA: Acho que o humor é parte
integrante da minha linguagem literária. Levei certo tempo
para descobrir isso. "Ensaio da paixão" foi o
meu rompimento com o que eu fazia até então. Nele,
o humor tem um toque de brutalidade, alguma coisa catártica,
violenta, às vezes cruel; como se fosse de fato impossível
qualquer relação humana saudável. A saída
é o riso demolidor. Mas há uma contraparte suavizante:
o narrador tem um pé fincado na utopia, percorre por todo
o livro um desejo de paraíso e transcendência, um
certo desejo de comunhão universal que, acredito, está
na essência dos anos 70, anos da minha formação.
Mais tarde, nos livros seguintes, o meu humor literário
foi tomando um outro rumo, mais contido, mais irônico que
carnavalesco, mais, digamos, civilizado...
Você escreveu o livro em 1980 e, de lá
para cá, se tornou um dos mais destacados especialistas
na obra de Mikhail Bahhtin, que tem todo um estudo sobre o humor.
De que maneira esse aprofundamento na obra de Bakhtin influenciou
você neste "Ensaio"?
TEZZA: Entrei em contato com a obra teórica de Bakhtin
no final dos anos 80, quando já era, digamos, um escritor
maduro. E sempre tentei separar rigorosamente as águas
teóricas do professor de universidade da atividade de escritor,
que preflro deixar meio no escuro, com um bom espaço para
a intuição. Mas é evidente que alguma interferência
deve haver. O que me influenciou na reescrita foi mais a maturidade
do escritor, o maior domínio do texto e da estrutura romanesca.
Reescrevi-o "pisando em ovos", era preciso não
destruir a sua alma, aquele jeitão anárquico e meio
bruto que, afinal, é o livro. O autor que escreveu o "Ensaio"
não existe mais. Tentei respeitá-lo.
Neste livro seu estilo está muito mais
próximo do humor. O texto é um pouco diferente dos
que vieram depois, mais farsesco, mais teatral. Essa teatralidade
é uma influência da comunidade liderada por W. Rio
Apa?
TEZZA: O teatro está na essência de toda a
concepção do livro pois fez parte da minha formação.
Fui iluminador da primeira peça de Denise Stocklos, "Círculo
na lua, lama na rua", em 68, quando conheci Wilson Rio Apa,
que havia publicado "A revolução dos homens"
(JO) e "No mar das vitimas" (Brasiliense) e que se tornou
o meu guru literário e existencial. Engajei-me na sua comunidade
de teatro, em Antonina, no litoral paranaense, e vivi todos os
projetos alternativos daquele tempo. A síntese literária
dessa vivência está em "Ensaio da paixão".
Há um traço dramático em boa parte da minha
literatura que denuncia a influência do teatro.
Seu último livro, "Breve espaço
entre cor e sombra" também é inspirado em Apa?
Ele está retratada em todos os seus livros?
TEZZA: O único livro que eu escrevi tomando como
ponto de partida algumas pessoas reais é o "Ensaio
da paixão". Ele ficou ficou sendo o testamento da
influência existencial que Apa teve sobre a minha vida.
Do livro seguinte - "Trapo" - até hoje, minha
literatura tomou um rumo bastante diferente. Há de fato
a recorrência de um certo personagem "pai/mentor",
em alguns dos meus livros. Um psicanalista diria que estou inconscientemente
preenchendo o espaço do meu pai, que morreu quando eu tinha
seis anos. Como acho a psicanálise uma forma sofisticada
de ficção, estamos todos em casa...
O recurso de trabalhar um grupo teatral que
encena uma paixão surgiu na literatura em obras como "Cristo
recrucificado", de Nikos Kazantzakis, e apareceu também
no filme "Jesus de Montreal", de Denys Arcand. É
um recurso recorrente na literatura moderna e contemporânea.
Que contribuição você acha que deu ao tema
com este "Ensaio"?
TEZZA: O gancho do livro é, simplesmente, a paixão
de Cristo que Apa passou a promover anualmente. Acho que meu livro
não dá contribuição alguma ao tema
da paixão em si, porque ele é só o argumento:
a matéria do romance são os atores e seu imaginário,
no pano de fundo dos anos 70.
No livro você fala dos anos 70, de hippies,
drogas e do governo militar, o oposto de tudo isso. Você
diria que o livro é uma obra de época que retrata
esse período de repressão?
TEZZA: Ele não é um livro documental - é
um romance criado sob e sobre os anos 70.
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