CORREIO BRAZILIENSE
Brasília, 15 de junho de 1999


RECORTES IDEOLÓGICOS DE UMA GERAÇÃO
Ensaio da Paixão promove desfile de
personagens dos anos 70 e 80

Lígia Cademartori
Especial para o Correio

O foco narrativo de Ensaio da Paixão, de Cristovão Tezza, não incide, como se poderia presumir, em sentimentos ou inclinações afetivas intensos. O relato se baseia nos recortes ideológicos de uma geração. A paixão do título refere-se à teatralização do martírio de Cristo. A ação se desenvolve durante os preparativos para a encenação feita sem roteiro, interpretada por atores não profissionais.

O ensaio se realiza, todos os anos, no isolamento de uma ilha no sul do Brasil. Congrega pintores, escritores, iogues, bancários, marginais, chefes de família, personagens características de uma época em que havia utopias e se acreditava na contracultura como salvação.

O autor compõe fragmentariamente a representação desse mundo anárquico. Faz desfilar variedade de tipos da década de 70, com jargões e clichês datados, lembranças do sonho antigo de reformar o mundo pela rebelião. A previsível contraparte das formas de resistência ao sistema que o grupo ensaiava é a repressão armada.

O romance é relato de experiência particular. O autor é movido pela determinação realista de representar grupo de pessoas e o estilo de vida adotado em determinado momento histórico.

A narração se faz com palavras ainda coladas à fala. Prescinde-se da busca de solução formal para que a situação característica se manifeste literariamente. Isto é, não há preocupação com a passagem do plano da experiência para o da significação literária, em que os efeitos de sentido são vários e incontroláveis.

Texto muito característico da ficção produzida nos anos 70 e 80, a forma de representação de Ensaio da Paixão serve ao propósito documental. Com presença de humor e momentos de drama, apóia-se fortemente no diálogo para compor a circunstância. O imediatismo da consciência do narrador e a simplicidade da representação são correlatos à função que às narrativas de então se atribuía: suprir os espaços deixados em branco pela história oficial.

Lígia Cademartori é doutora em Teoria Literária pela
Universidade de Brasília.




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