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TERCEIRA
MARGEM
REVISTA DO CENTRO DE ESTUDOS BRASILEIROS
FACULDADE DE LETRAS DA UNIVERSIDADE DO PORTO - PORTUGAL
Nº 2 - 1999
CRISTOVÃO TEZZA
Breve Espaço entre Cor e Sombra
Rio de Janeiro, Rocco, 1998
Este
romance privilegia, a partir do título, a dimensão
espacial e visual.
O protagonista e narrador, Eduardo Tato Simmone, é pintor
como o seu mestre Aníbal Marsotti, cujo enterro suscita
a narração; alguns personagens importantes - a mãe
Isaura, Richard Constantin, a apaixonada romana - são marchands;
vários diálogos e passagens narrativas incidem sobre
questões da pintura ou do pintor; de Rafael a Pollock,
de Bosch a Volpi. mais de seis dezenas de pintores e escultores
sao referidos, às vezes repetidamente (Van Gogh, Picasso,
sobretudo Modigliani), e às vezes de modo inusitado ("a
paisagem é chiriesca", "a pintura é uma
composição mondriânica", "um tango
pintado por David"); algumas acções ocorrem
num museu, num atelier, numa pinacoteca; e a intriga progride
graças ao mistério de uma cabeça esculpida,
falsa ou verdadeiramente atribuída a Modigliani, e vendida
e roubada em condições intrigantes.
Curiosamente, o prestigiado pintor Tato considera-se mais desenhador
do que pintor, "completamente incapaz de orientação
espacial", e mais apreciador da literatura do que da pintura.
A sua apaixonada italiana diz mesmo que ele "mais parece
um escritor que conta histórias que um pintor que pinta
quadros". E ela tinha em vista os seus quadros ou desenhos,
não este romance onde na realidade há 4 capítulos
que narram ou interpretam quadros, e onde Tato tenta ser escritor,
aparentemente insatisfeito com a sua condição de
pintor. Essa insatisfação não chega a ser
explicada, mas o primado do verbal sobre o visual do ler sobre
o ver é por ele defendido, embora se recuse a discuti-lo
("discussão idiota").
O trabalho com palavras e não já com imagens impõe-se
num momento de crise, humana e artística, social e sentimental:
morto o mestre que afinal já deixara de o ser, desfeito
o casamento dos pais, perdido o prazer das viagens pelos paraísos
artificiais (da droga), suspeitando das relações
sentimentais numa cidade, Curitiba, outrora de vampiros (impossível
esquecer Dalton Trevisan) e agora também de vampiras, duvidando
da sua capacidade para pintar o mundo mais do que paredes, Tato
tateia, aos 28 anos, o recomeço de uma vida verdadeira,
para a qual já não lhe hasta ver mas e necessário
ler o que se passa consigo e com os outros.
A sua necessidade de verbalização parece-se afinal
com a da sua apaixonada italiana, que lhe escreve uma carta-testamento)
- que equivale a 1/3 do romance que atravessa (9 do 27 capítulos,
distribuídos, em suspense, a intervalos de 4 ou 2). Vinda
de um casamento falhado e de uma relação prolongada
e traída, a vendedora (primeira?) da cabeça de Moligliani
tenta aos 40 anos sobreviver ao seu fracasso e à sua culpa
escrevendo a um longínquo - em mais de um sentido - correspondente,
que imagina que nunca a lerá, tornando-se esta portanto
a verdadeira destinatária da sua própria carta,
onde por mais de uma vez sublinha a importância do exame
da sua vida. Mas o destinatário lê-a e torna-a (traduzindo-a),
co-autora do seu romance, ela que, se está na origem de
uma questão sentimental, está também na origem
de uma questão policial-a da cabeça de Modigliani.
Tato rouba essa cabeça não por exigências
artísticas próprias mas por razões misteriosas
de sua mãe e por outras razões que transformaram
o tímido pintor individualista em ousado ladrão
altruísta. Há alguma inconsistência lógica
e psicológica nesta como noutras situações
do romance, mas "a cabeça de Modigliani" - curiosa
designação ambígua - funciona como uma boa
metáfora ou um bom símbolo dos problemas mentais
das personagens que têm que enfrentar ou resolver vários
quebra -cabeças profissionais, sentimentais, familiares
sociais, e que têm que ler o "breve espaço entre
cor e sombra", os mínimos intervalos entre a verdade
e a falsidade, sobretudo das relações humanas. Porque
o mundo está cheio de "puxa-sacos, calhordas, ladrões,
estupradores, loucos varridos, vagabundos presunçosos,
monstros de egoísmo" que até podem ser grandes
artistas - grandes mentirosos.
Privilegiando aparentemente a dimensão visual e objectiva,
Cristovão Tezza acaba por fazer valer um subjectivo chiaroscuro.
Para isso contribui também a estruturação
algo descontínua ou sincopada do romance, que começa
com um enterro e acaba com uma festa - dois acontecimentos de
cor diferenciada, mas que favorecem idênticos encantos ou
desencantos, perdas e fraudes.
Pena é que a montagem e a escrita, por vezes moderníssimas,
por outras vezes dêem conta de algum descuido ou de alguma
artificialidade.
Arnaldo
Saraiva
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