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A
TARDE
Salvador, 19 de setembro de 1998
UMA PINTURA DO MUNDO
Ruy Espinheira Filho
Cristovão
Tezza é, hoje, uma referência obrigatória
na literatura brasileira. Entre os autores que surgiram nos anos
70, destaca-se como um dos que obtiveram maior aceitação
por parte da crítica e do público. Romancista, contista,
poeta, teatrólogo, ensaísta, crítico, autor
de livros didáticos e professor universitário, alia
uma técnica admirável a uma sensibilidade capaz
de desvelar aos olhos do leitor as mais variadas cores e sombras
da alma humana. Esta é, na verdade, uma das mais fortes
características de sua obra: o aprofundamento psicológico.
Lendo Cristovão Tezza, não ficamos apenas conhecendo
figuras vistas de fora - pois é inevitável a descida
às profundezas dos personagens. O que os revela na intimidade
- e, de certa forma, põe também o leitor diante
de si mesmo, de suas próprias regiões submersas.
Breve Espaço Entre Cor e Sombra, último romance
lançado por Cristovão Tezza, é um belo exemplo
de harmonia formal e perquirição da alma. O pintor
Tato Sinimone não é um homem de papel, um títere
(como, infelizmente, tantos na nossa e nas demais literaturas),
mas um personagem verdadeiro -dessa pungente verdade das autênticas
obras de ficção. O que nos vem dele - e com ele
-matéria pulsante de vida: sonhos, remorsos, carências,
vilezas, grandezas, verdade, mentira, amor, ódio, inveja,
impotência, autenticidade, falsidade. Um artista diante
do grande desafio da Arte. Um homem e sua inelutável perplexidade
(como acontece com todos nós), em face da vida.
O personagem Richard Coastantin coloca a questão implacável
desta maneira: (..) "a arte é sempre uma aposta de
alto risco, e sem volta. (..) Não serve meio talento. Ou
três quartos de talento. Não. O dom deve ser integral,
um cheque em branco de Deus. É uma aposta pesadíssima,
porque, afinal, quem nós garante alguma coisa? (...). Quem
nos diz, por exemplo, que Mondrian é um gênio e não
um monótono pintor de azulejos? Sozinho, alguém
sustenta a genialidade? Não; no máximo, corta a
orelha. Daqui a 200 anos saberemos o- tamanho exato de Mondrian,
como hoje conhecemos a estatura de Miguelângelo, talvez
não tão imediatamente visível no tempo dele,
com todos aqueles monstros renascendo em volta. Mas, enfim, um
azulejo é um azulejo; não é exatamente a
recriação do mundo, se você percebe o que
quero dizer Você quer pintar o mundo ou a parede?"
Posta esta questão, que é sempre crucial para todos
nós, artistas ou não artistas, estamos novamente
nus e indefesos como quando nascemos. Porque haverá na
resposta, seja ela qual for - inclusive a não-resposta,
certamente a mais comum -, um nascimento. Pelo menos o nascimento
de uma proposta: pintar a parede, ou pintar o mundo, ou não
pintar coisa nenhuma - porque não temos forças para
nada ou porque achamos que nada faz sentido.
Tato Simmone .responde que sempre quis pintar o mundo. Mas, é
claro, querer nunca foi suficiente. Ele sabe disto. Nós,
leitores, também o sabemos. Mas, sabendo isto, o que é
mesmo que sabemos? A questão continua a mesma. Tato Simmone
é um pintor. É um homem. É um ser como nós.
Inclusive como Miguelângelo. Mas será apenas dele,
Tato Simmone, o que pintar. Ou o que não pintar. O que
viver - ou deixar de viver.
Breve Espaço Entre Cor e Sombra é um livro que trata
de coisas assim. Mas trata como um romance, uma obra de arte,
não como seco interrogatório, sabatina - digamos
- inquisitivo-filosófica. É obra que nos desperta
não apenas a atenção da inteligência,
da apreciação intelectual propriamente dita, mas
também (melhor: principalmente, pois-se trata de arte)
a emoção em suas formas maiores de sutileza e intensidade.
Mais uma densa criação de Cristovão Tezza
- que de há muito vem demonstrando ser capaz de, em sua
literatura, pintar o mundo.
Ruy Espinheira Filho é poeta, ficcionista,
ensaísta e
professor do Instituto de Letras da UFBA.
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