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REVISTA
LETRAS - EDITORA DA UFPR
Nº 50 - JUL/DEZ 1998
O ESPAÇO DO SUSPENSE:
UMA LEITURA DE BREVE ESPAÇO ENTRE COR E SOMBRA,
ROMANCE DE CRISTOVÃO TEZZA
Rosse Marye Bernardi
A cada novo romance publicado por Tezza vem crescendo o reconhecimento
do seu trabalho. Os elogios são unânimes e vários
cnticos lhe têm salientado os recursos técnicos e
sua excepcional capacidade criativa. No dizer paradigmático
de Wilson Martins - talvez o mais parcimonioso e exigente de nossos
críticos militantes - o autor, com Breve espaço
entre cor e sombra, "chega à sua maturidade de romancista,
situando a criação dos personagens, os perfis psicológicos,
a intriga e as peripécias no plano intelectual da grande
literatura".
Tomando a deixa do crítico, podemos acrescentar que Tezza
já é senhor de uma personalidade literária
sui generis, reconhecível no extraordinário trabalho
com a linguagem e na maestria com que domina o arcabouço
narrativo e as várias vozes que povoam o seu universo.
E tudo isso colocado a serviço de uma visão de mundo
forjada no campo da aventura, da experiência e da paixão
pelas artes.
Fugindo a uma divisão convencional em capítulos,
Breve espaço entre cor e sombra estabelece o seu ritmo
pela intercalação de diferentes linguagens, técnica
que se configura como uma espécie de leitmotiv, pois, de
forma mais ou menos sistemática, desde Trapo o autor vem
organizando suas narrativas a partir da duplicidade de pontos
de vista, maneira multifacetada de ver e escrever o mundo.
Na primeira narrativa, o sujeito é Tato Simmone - jovem
pintor cujo discurso vem marcado por uma retórica verossímil,
traduzindo a sua formação, leitura e horizonte lingüístico.
Todos os seus referentes têm a marca da cor e da sombra
e é a pintura que pontua de forma séria ou irônica
o seu relacionamento com o mundo. Sob a perspectiva do autor,
esta opção enfática por uma linguagem específica,
por um jargão (na terminologia bakhtiniana), com todos
os seus acentos e significados, mostra a intenção
temática de trabalhar no terreno das artes plásticas,
levando ao conseqüente desvendamento das difíceis
relações desse meio, com todas as suas mazelas.
Como muitos artistas, Tato precisa de um mestre - um espelho,
um olhar, que dê à sua pintura o aval que sua própria
insegurança lhe nega. A cena inicial do romance é
o enterro de Aníbal Marsotti, ex-mestre e amigo, cujo corpo
desce à sepultura "numa manhã azulíssima
de Curitiba, esse azul único daqui, cruel e mudo, filho
do frio e da timidez" (p. 9). O ritual do enterro propicia
a reatualização das memórias de Tato - típico
filho da provinciana Curitiba. O episódio é o estopim
que deflagra uma crise existencial e a necessidade de recomeço
em uma vida sem história. A partir daí lançam-se
os fios que vão dar substância aos vários
momentos de sua narrativa. Ainda à beira do túmulo,
num humor que dessacraliza o cenário algo pungente, surgem
dois fantásticos personagens - a vampira e Mr. Richard
Constantin, espécie de Mefistófeles redivivo, dono
de um discurso que por si só justificaria um trabalho crítico.
Sedutor e cínico, Constantin desfila teorias e erudição,
que bem sugerem o árduo trabalho de pesquisa realizado
pelo autor. Ambos os personagens agem dessacralizando o mundo
da arte - transformando-o num espaço em que imperam as
ações dúbias, a ambição, a
inveja, o ciúme, tudo temperado com momentos de muito humor,
característica inerente à visão de mundo
do autor. Já no imaginário pictórico do artista
eles competem entre si pela posse da sua alma:
Um
amigo morto. Em seguida, uma vampira interessada em me ver, só
para sugar a última gota do meu sangue. E agora, Mr. Satã,
o demônio da sedução, pronto a comprar minha
alma por um bom preço. Era tudo uma questão de barganhá-la
com sabedoria. Senti falta de minha mãe, O que diria desse
homem? Confiável? Não confiável? [...] (p.
23)
Será
o destino de Tato igual ao de Marsotti, seu sangue será
sugado, exaurindo-se suas forças em outros fins que não
a arte, ou sua pintura será transformada pelo discurso
do marchand que lhe oferece a fama em troca de um aperfeiçoamento
técnico que nada tem a ver com a sua cabeça, com
a sua visão de mundo?
No entanto, como tudo no texto oscila no limbo das possibilidades,
o leitor não terá certeza de nada, nem da genialidade
nem da mediocridade do artista - dependente que fica da própria
indecisão do seu discurso. Neste sentido, a discussão
sobre o verdadeiro e o falso na arte, e o seu desdobramento entre
a autenticidade e o simulacro, o original e o pastiche, vem metaforizar
o episódio da (falsa) cabeça de Modigliani que sustenta
a (pseudo) intriga policialesca do romance. Na realidade, o episódio
transcende estes limites para ganhar desdobramentos muito mais
sutis e perturbadores - abrindo o espaço do texto para
o exercício do suspense, considerado aqui como um valor
que extrapola o seu sentido convencional. A partir da própria
epígrafe do romance ("- Cómo pintas? / - Con
la cabeza."), citação que Tezza foi buscar
em Max Aub, a imagem se duplica, permitindo-nos mergulhar na cabeça
de "um pintor de mente povoada", mas incapaz de transpor
as imagens mentais para a concretude das formas e cores.
Por outro lado, o que é verdadeiramente autêntico
em arte? No romance, a bela escultura leva ao engano uma crítica
abalizada (a italiana) e uma marchand experiente (a mãe
de Tato). Ambas atribuem autenticidade à falsificação.
O que, aliás, coincide - no episódio real de Livorno,
em 1984- com o aval dado a algumas peças falsas pelo crítico
Giulio Calo Argan , mostrando-nos assim quão tênues
são as fronteiras entre o falso e o verdadeiro em matéria
de arte. A chancela de autenticidade, dependente apenas de uma
palavra que por sua vez também poderá ser falsa,
como as falsas pistas que podem levar a uma leitura apenas superficial
do texto. Assim, se no nível da intriga a cabeça,
os telefonemas e as várias invasões na casa de Tato
formam a base do suspense que coloca o leitor num horizonte de
constante tensão, estes mesmos ingredientes, duplicando-se,
propiciam um espaço de reflexão sobre a arte, as
relações humanas e sobre a própria vida.
Na visão de mundo que orquestra o texto, o suspense é
o pressuposto de um universo em transformação, onde,
ao contrário de uma concepção clássica
do mundo, nada nem ninguém pode permanecer em repouso.
Segundo o autor:
O
pressuposto do suspense é o fato de que as coisas podem
ser diferentes, há escolhas. Quando há suspense,
o mundo não está pronto. E se há um lugar
privilegiado para ele demonstrar sua completa incompletude, seu
inacabamento primordial, este lugar é o romance.
Assim,
vê-se que todos os ingredientes "policialescos"
têm uma função outra que não a de simplesmente
desvendar um mistério, fazendo o mundo volta à sua
enganosa estabilidade. Na realidade, a história não
tem fim, ela mais deixa dúvidas que certezas, enredada
que está nos fios de Ariadne, a surpreendente jovem que
desmistifica a verossimilhança literária, possibilitando
a saída do labirinto, na opção narrativa
pelo inverossímil, pelas coincidências inexplicáveis.
Tato, de posse da cabeça de Modigliani, contra toda a lógica,
recusa-se a livrar-se dela. Em vez de jogá-la no rio Belém
para exorcizar a mentira e da paz à mãe e à
italiana, opta por deixá-la no próprio quarto, sobre
um banquinho, a olhá-lo no instante do verdadeiro recomeço.
E esta a metáfora de sua própria libertação.
O pintor, afinal, toma-se um escritor, desenhista de personagens,
senhor absoluto do território da mentira em que se move
a literatura. São palavras de Ariadne, mas bem podem projetar
a própria escrita do romance, que vira do avesso perspectivas
e clichês.
No contraponto do discurso de Tato com sua ideologia da angústia
e solidão, temos a carta da italiana, igualmente verossímil
e consistente em termos ideológicos. Seu longo e pungente
discurso epistolar, intercalando a narrativa do pintor - um servindo
ao outro (pela própria inserção) como elemento
de suspense. Os dois discursos diferem tanto sintática
quanto ideologicamente, enfatizando oposições que
se marcam pelos sentimentos do homem e da mulher, pela geração,
pela distância temporal e espacial e por diferentes sistemas
de valores. No entanto, estas oposições concretizadas
em dois pontos de vista sobre o mundo acabam por se iluminar mutuamente,
um possibilitando a melhor compreensão do outro, na clara
afirmação de que uma linguagem ésempre uma
resposta a outra linguagem.
Na minha opinião, nesta carta Tezza supera a si mesmo.
Dominando com maestria o processo de estilização,
ele cria uma indubitável e inteligente linguagem, uma visão
de mundo feminina, capaz de, num momento limite, transformar em
força toda a fragilidade, medos e anseios. Maravilhosa
a noção que ela tem de paixão e, mais ainda,
de uma coisa terrível e inexoravelmente humana que é
o esquecimento. No seu discurso confessional a italiana vai, aos
poucos, deixando de lado a idéia da morte para reconstruir-se.
Esta reconstrução implica superar a traição
do outro e o engano que a levara a confundir o verdadeiro e o
falso, na vida e na arte. Novamente temos aqui a falsa cabeça
de Modigliani - coincidência demais no plano da intriga,
mas uma bela metáfora se levarmos em consideração
a reflexão sobre a vida e as relações amorosas.
Um dos motivos mais instigantes no discurso da italiana, repetido
quase à exaustão, são os desenhos-cartas
que Tato lhe enviara ao longo de um ano de correspondência.
Segundo palavras da missivista, "são treze fotogramas
que se movem não no espaço, mas no avesso do tempo;
a fotografia que, de tanto sol, vai se apagando, até a
completa ausência de memória." (p. 70)
Como ela não quer perdê-lo, ela parte na direção
oposta, construindo-o na linguagem literária:
A
cada dia você mais nítido, mais completo, mais tímido
e mais suave - e a lembrança das tuas mãos, os dedos
tão longos, écomo se eles me tocassem ainda, na
limpeza desinteressada do acaso. (p. 70)
A
oposição é de extrema beleza, e me parece
evidente que ela aponta também para uma reflexão
sobre as artes e seus recursos expressivos. Além dos dois
discursos ideologicamente marcados - o de Tato e o da italiana
-Breve espaço entre cor e sombra abre ainda espaço
para a inserção de outras linguagens, que se manifestam
em quatro trechos intitulados como os quadros de Tato Simmone.
O primeiro deles - "Crianças" - surge logo após
a verborragia teórica de Constantin e bem pode ser uma
resposta pelo avesso. Porém, mais correto talvez seja atribuir-lhe
a função de presentifica a obra pictórica
de Tato, ao mesmo tempo em que tematiza a impossibilidade de transpor
a contento uma linguagem artística para outra. Em vez de
uma descrição ou comentário sobre os quadros,
temos uma linguagem onírica, subjetiva, aparentemente desconectada
do restante da obra. A mesma experiência se repete com "Immobilis
sapientia" e com 'Réquiem", radicalizando-se
em "Estudo sobre Mondrian", que traz a repetição
monótona das mesmas expressões, num exercício
puramente sintático.
No plano da estrutura romanesca, tais alternâncias discursivas
ganham uma funcionalidade que se traduz em tensão no nível
da leitura. Como se todos os elementos do romance, nos seus vários
níveis, se unissem realizando a intenção
maior do autor - fazer do texto um motivo de reflexão.
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