O POPULAR
Goiânia, 19 de julho de 1998

ESPAÇO PARA PENSAR A VIDA E A ARTE

Em seu 11º livro, Cristovão Tezza, um catarinense
que vive há 40 anos em Curitiba, usa o suspense para defender a arte e questionar a existência

CILEIDE ALVES

O protagonista é Tato Simmone, um um pintor de 28 anos de idade, sustentado pela mãe, que tanto poderá ser reconhecido como um grande artista, ou apenas um medíocre que nunca sairá do anonimato. A mãe é uma marchande em Nova York; o pai, um ex-militante de esquerda ressentido com os políticos atuais, tendo de trabalhar para eles para sobreviver; o novo amigo, um colecionador de artes, que tanto pode ser um marchand respeitável quanto um grande picareta; a amiga Dora, uma gordinha muito simpática; uma nova amiga, que ele não sabe o nome, por isso lhe apelida de vampira"; um pintor famoso, que foi seu mestre, morto de overdose; do outro lado do oceano, uma italiana que vive uma crise pessoal.

Com esses ingredientes, temperado com suspense, discussão sobre a arte e a vida, o catarinense 'naturalizado' paranaense (ele mora há quase 40 anos em Curitiba e se considera de dupla 'nacionalidade'), Cristovão Tezza, compõe seu 11º livro, Breve Espaço entre Cor e Sombra, lançado pela Editora Rocco. Exilado em Curitiba por causa da profissão - Tezza é professor de Língua Portuguesa da Universidade Federal do Paraná - o escritor só tomou-se conhecido dos brasileiros depois que teve publicados por editoras do eixo Rio/São Paulo. "Editei quatro livros aqui e é a mesma coisa que nada", disse ele a O POPULAR.

Bem-humorado, Tezza afirma que os curitibanos são tímidos, e não se promovem, como fazem os baianos. "Os catarinense-, ao contrário, são bairristas, tem essa coisa da Bahia. Lá eu fiz sucesso por ter nascido no Estado. Aqui também sou considerado curitibano, porque moro na cidade há quase 40 anos, mas só consegui destaque depois do sucesso lá fora. O Paraná é muito tímido, tem vergonha. Curitiba é muito resistente, para fazer sucesso aqui precisa dc um esforço sobre-humano", diz, sem mágoa, e sempre com o mesmo bom humor.
De editora nova, o sucesso de público e de crítica chegou para Tezza com dois romances Trapo - sobre a vida de um poeta suicida de 20 anos -, editado pela Brasiliense em 1988 e Uma Noite em Curitiba - sobre a paixão entre uma atriz-, este editado pela Rocco, em 1995. Quem pensa que esse professor bateu muitas pemas e amargou horas nas ante-salas de editores para conseguir publicar seu primeiro livro fora de Curitiba engana-se. Sorridente, ele revela seu segredo: "O correio foi meu aliado. Coloquei os originais nos Correios e logo veio a resposta."
Desde essa época ele não teve mais problemas para publicar seus livros. Primeiro foi pela Brasiliense, depois ele foi para a Record, onde lançou três livros, e agora lança o segundo pelo selo da Rocco.

Suspense

Além de ter conquistado o reconhecimento do público, o autor de Breve Espaço entre Cor e Sombra afirma que é hoje um escritor mais maduro. E é este Tezza de hoje, que um dia foi um escritor "jovem, alegre e libertário", que usa a ficção para discutir a vida. Em seu Breve Espaço... a vida é observada como se observa um quadro: à distância. "É preciso de uma distância para avaliar a vida. A vida fica numa moldura, congelada e a gente vê de longe. E na literatura a vida é melhor, mais organizada, mais bonita".

O suspense está presente no livro desde o início. São pequenas pistas, muitas falsas, intercaladas com a história de uma cabeça falsa do pintor italiano Amadeo Modigliani (l884/l920),presente nas preocupações tanto da mãe marchande, quanto da italiana crítica de arte, quanto do marchand Richard Constantin.

O suspense só ganha mais intensidade a partir da última parte do romance, já que ele está intercalado por histórias paralelas também importantes: a angústia do narrador, o drama amoroso misturado com a crise de consciência da italiana; os novos amigos - Constantin e a "vampira"-; os problemas com o pai, que mora no Rio de Janeiro e busca sempre um jeito de tomar algum dinheiro da ex-mulher; os problemas com a mãe; a amiga Dora de quem ele gostava e supunha que ela tinha se gundas intenções com ele e até um belo diálogo am Ariadne, a filha de Constantin, sobre a importância das artes plásticas e da literatura.

"Lá ninguém sabe quem é quem", diz Tezza. Apesar de a arte ser uma constante no livro, o escritor afirma que as historietas do romance não têm o objetivo de falar sobre a relação entre a arte e a vida. "Não tive essa preocupação, mas sim de falar sobre a vida e o modo que encontro para isso é a ficção. Minha literatura está ficando muito reflexiva", avalia.

O livro tem dois narradores: Tato Simmone, o protagonista, o pintor de 28 anos cheio de angústia e à procura de si mesmo; e a italiana, uma mulher de 40 anos, no auge de sua maturidade, crítica em relação a si própria e à procura de virar um página em sua vida. A narração de Tato é intercalada pelas cartas da italiana. A alternância de capítulos, onde duas histórias paralelas acontecem, criando um mosaico, é uma característica nas obras desse catarinense.

"Muitos romances meus têm essa narrativa dupla. Meus livros nascem de um ponto de vista, e depois sinto a necessidade de um contraponto, como se uma idéia só se iluminasse com um contraponto, que vai criar uma nova dimensão humana". Esse detalhe nas obras de Cristovão Tezza lembra a opinião de um de seus personagens em Breve Espaço.... Richard Constantin afirma que a obra de arte tem sempre um DNA, "um pedaço da obra que contém potencialmente todo o resto". A altemância de capítulos é o DNA da obra de Tezza? "Acho que sim, você tem uma marca registrada que pode ser encontrada num parágrafo", concorda, sorrindo com a comparação.

A italiana que intercala a narrativa é uma personagem forte. Nas palavras de seu criador ela representa uma contrapartida, dá o peso histórico do europeu, uma visão estável, de tradição e arte, que se contrapõe a um tipo de mundo novo, que é o Brasil, "onde parece estar tudo por fazer". Segundo Cristovão Tezza, ela tem o fascínio do europeu ("eles estão cansados deles mesmos") pelo Brasil. A Europa toda tem uma relação boa como Brasil. Foram eles que inventaram o paraíso tropicalista e estão atrás dele desde a Renascença."

O contraponto desta italiana ao livro é maior do parece à primeira vista. A visão de mundo dela é mais ferina (veja alguns trechos). Ela é extremamente cruel com ela mesma, e, ao contrário, complacente com os homens. "Não havia pensado nisso, mas não acho que fui tão complacente com os homens. Ela (a ilaliana) se recusa a dizer que seu fracasso é culpa dos outros, o que é um ato de coragem. Essa crueldade é o desejo de não mentir. Ela tem um grau de exigência fortíssima, é traída, ferida', explica o autor.

Coincidência

A discussão sobre a arte é muito rica e só ela já vale a leitura de Breve Espaço... O ponto de partida do autor foi uma cabeça falsa de Modigliani. Cristovão. Tezza revela, bem-humorado, que teve a idéia de criar essa história e resolveu pesquisar sobre o pintor italiano. Foi a Livorno, na Itália, cidade onde Modiglia-ni nasceu. Para sua surpresa. descobriu que o que tinha imaginado, uma cópia falsa de uma peça, acontecera de verdade.. Durante as comemorações do centenário de nascimento do. pintor a prefeitura de Livorno, dragava um fosso em busca de. peças lendárias, quando estudantes jogaram algumas cabeças de pedra, feitas em casa.

Foi um escândalo nacional", conta. Apesar da coincidência, Cristovão Tezza não desistiu de sua história.

As pesquisas sobre a arte foram além da obra de Amadeu Modigliani. Apaixonado por artes plásticas (na juventude ele fazia cópias de pinturas), ele passou o ano de 1997 inteiro lendo sobre pintura. Fez um curso autodidata sobre pintura, teoria e prática, e também viu muito quadro. "Sempre estudei o assunto, mas sistematizei mais para deixar o Tato um pouco mais seguro. Quando ele fala tem uma visão de mundo por trás".

A defesa da arte é tão veemente, que Richard Constantin chega a cometer uma heresia do ponto de vista dos cristãos. "Só a arte salva. Esqueça Jesus Cristo. Só a arte pode garantir a sobrevivência da civilização..." Cristovão Tezza não vê heresia e defende a idéia. Ele acha o argumento de Richard interessante e observa que a elite cultural vive num mundo totalmente laico "Talvez o mundo nunca foi tão laico, tão desprovido de teologia, entre esta elite. É bom por um lado, mas cria um vazio do ponto de vista da utopia." Tezza acha que a argumentação de Richard põe a arte onde antes estava Deus. "Para os laicos a arte é a ética", completa.

Sobre o suspense, não vale pena comentar, para não tirar prazer da leitura, e que prazer, afinal, como diz a bela Ariadne (a grande paixão de Cristovão Tezza), "há um único lugar do mundo em que o mundo tem lógica e ordem: a literatura". E no livro deste catarinense isso não podia ser diferente.

Novo projeto é um relançamento

Cristovão Tezza confessa que está pronto para começar uns romance quando tem a primeira frase do livro. No processo de criação, a história vem antes da frase, mas é ela que indica a maturidade da obra. "A frase denuncia uma visão de mundo. É o ponto de partida", disse ele a O POPULAR.
O ponto de partida, entretanto, pode não resistir às inúmeras revisões da obra. Em Breve Espaço... a primeira frase era "Jamais consegui viver sem um mestre. Jamais, talvez, seja um exagero", substituída depois das revisões por "Eu sei o que está acontecendo: a depressão dos enterros. Em defesa invento a ilusão do recomeço, como se o ser que desce à terra fosse o meu próprio passado".
Tezza afirma que até mesmo a história inicial pode se alterar à medida que o texto avança. "Eventualmente a história pode ser uma surpresa para mim. Às vezes toma um rumo inesperado", conta. No caso de Breve Espaço entre Cor e Sombra, seu último livro, ele revela que as quatro filhas de um dos personagens não existiam. Elas surgiram depois e foi uma boa surpresa porque uma das meninas, Ariadne, é uma bela personagem, ou, nas palavras do próprio autor, é "fabulosa".

Outro autor

Apesar do sucesso com Trapo e Uma Noite em Curitiba, Cristovão Tezza ainda é um autor pouco conhecido em Goiás. Ela viaja pouco para divulgar sua obra por causa das aulas na Universidade Federal do Paraná. "A atividade de professor não dá muita chance. A gente fica só dando aula", afirma. A greve das universidades públicas deu um tempo para o professor se dedicar à carreira de escritor. Ele trabalha na reedição de Ensaio da Paixão, editado pela primeira vez pela Criar Edições, em 1982, que será relançado pela Rocco ainda este ano.

"O livro é sobre os anos 70 e é muito engraçado. Escrevi em 1981 e me divirto muito agora reeditando, porque parece que foi feito por uso outro autor, um jovem alegre, feliz. É solto, anarquista, libertário", diz em tom de saudosismo.

Tezza acha que hoje está mais maduro, do ponto de vista técnico. Ele afirma que trabalha com muito cuidado para manter a idéia original de Ensaio da Paixão, porque o livro tem uma linguagem que, hoje, ele não consegue mais repetir. "Estou me revisitando, mas com muito respeito, porque senão destruo a obra". Recentemente ele deu o livro para a filha, de 15 anos, ler. "Ela achou o máximo, riu muito das girias da época, como estar na fossa ou com um grilo na cabeça", comenta também ele rindo da linguagem.

Cristovão Tezza publicou seu primeiro livro em 1979. Foi Gran Circo das Américas, pela Brasiliense. Em 1980, saiu A Cidade Inventada, pela Cooeditora, de Curitiba. O Terrorista Lírico, pela Criar Edições, também de Curitiba, foi publicado em 1981. No ano seguinte foi a vez de Ensaio da Paixão, seguido por Trapo (Brasiliense, 1986), reeditado pela Rocco em 1995. Aventuras Provisórias veio em 1989 pela Mercado Aberto, de Porto Alegre. A Record publicou Juliano Pavollini em 1989, A Suavidade do Vento, em 1991, e O Fantasma da Infância, em 1994. Já pelo selo da Rocco foram publicados Uma Noite em Curitiba, em 1995, e agora Breve Espaço entre Cor e Sombra.




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