O Estado de São Paulo
São Paulo, 23 de agosto de 1998

TEZZA DISCUTE UTILIDADE DA ARTE
EM ROMANCE DENSO

Em `Breve Espaço entre Cor e Sombra', autor descreve a solidão de um pintor incompreendido

JOSÉ CASTELLO

O mais recente romance de Cristovão Tezza, Breve Espaço entre Cor e Sombra (Rocco, 266 págs., R$ 26,00), começa em ritmo vertiginoso. As primeiras 27 páginas, que descrevem o enterro do artista plástico Anibal Marsotti, têm uma densidade, um apuro no trato da palavra e uma robustez de idéias bastante incomuns. Nessas primeiras páginas, Tezza nos faz lembrar alguns dos melhores momentos do escritor espanhol Javier Marias, com sua receita híbrida de ação e pensamento - escritor que, ressalve-se, ele nunca leu. Existem essas coincidências, essas sintonias inconscientes: Clarice Lispector também foi comparada a Virginia Wolf, cujos romances desconhecia. A sombra de Rubem Fonseca, autor que Tezza sempre cita como referência, ainda assim permanece visível. O mais importante, porém, é tentar descobrir o que Tezza tem de particular, o que Tezza tem de Tezza. Trazemos sempre vestígios de nossos ancestrais, mas raramente são eles que nos definem enquanto indivíduos.

É evidente que Tezza teria dificuldades de sustentar em 266 páginas uma escrita tão espessa. O livro ainda avança com força por mais umas 50 páginas, mas depois o ritmo cai e ele torna-se um tanto irregular. Essa arritmia é, aliás, uma dificuldade que já aparece em seus livros anteriores, o que pode indicar ansiedade ou impaciência, mas indica também inquietação. Ainda assim, mesmo que não tivesse um início tão devastador, Breve Espaço entre Cor e Sombra seria um belo romance. A história de Tato Simmone, o principal discípulo do artista morto, lançado em solidão brutal com o desaparecimento do mestre, contém uma fina reflexão sobre a arte e sua seqüelas inevitáveis: a inveja, a vaidade, a megalomania, o desejo de poder. Seqüelas, mas provavelmente também motores da criação.

Quando enterra seu mestre, Tato Simmone está com 28 anos, nunca fez uma exposição e só vendeu um único quadro - comprado, assim mesmo, pela própria mãe que, aliás, esqueceu no ateliê do filho. O mestre Marsotti, apesar da relação turbulenta que sempre tiveram, era, a rigor, a única pessoa a admirar os trabalhos de seu discípulo. Tato dedica-se há um ano, sem sucesso, a pintar um único quadro, que tem o sugestivo título de Immobilis Sapientia, isto é, Sabedoria Imóvel. Parece imperturbável diante do próprio fracasso e só a morte, que é, por definição, estática, vem sacudi-lo.

Gênio e picareta - Para recomeçar, pois a morte nos dá sempre a chance de acalentar esse desejo, Tato precisa ver-se com alguns personagens: o marchand Richard Constantin, que vem a ser uma mistura de gênio e picareta escondido sob a máscara da "volúpia do argumento e da retórica", uma vampira misteriosa; e ainda Dora, que se contenta de viver com esperanças. O ponto de vista de Tato alterna-se, ao longo da narrativa, com o de uma italiana que ele conheceu, por acidente, na escadaria do Metropolitan Museum, em Nova York - voz feminina que, nas mãos de Tezza, se enche de vigor.

Há ainda uma invasão de seu apartamento, sem que os motivos se explicitem, e uma cabeça perdida, uma cabeça de pedra de meio metro de altura atribuída ao escultor Amedeo Modigliani em 1913, que teria reaparecido em Curitiba mais de 80 anos depois. A capital paranaense, aliás, surge aqui e ali, em breves pincelada e Tezza jamais disfarça a relação tensa que tem com a cidade que adotou como sua - pois nasceu em Lages, Santa Catarina, mudando-se para Curitiba aos 8 anos de idade. São rápidas estocadas assim: "Meu primeiro impulso (nasci em Curitiba) foi colocar o pé atrás". Não é preciso dizer mais.

Ainda jovem, Cristovão Tezza ouviu de seu mestre, o diretor de teatro W. Rio Apa, com quem se iniciou como sonoplasta e ator, o conselho de que deveria dedicar-se ao estudo da pintura. Tezza tornou-se um copista esforçado - e até hoje tem, na sala de seu apartamento, uma cópia de Figura Decorativa sobre Fundo Ornamental, do francês Henri Matisse, obra guardada no Museu de Arte Moderna de Paris, onde Tezza a viu pela primeira vez, em 1975. Ele copiou a tela de Matisse, quando tinha apenas 18 anos de idade, e deu-a de presente à mãe, que só agora, 30 anos depois, a devolveu. Jamais teve, porém, a veleidade de tornar-se pintor. A experiência como copista, contudo, deixou marcas interessantes em sua literatura. "Meus livros são muito imagísticos", Tezza comenta. "Eu escrevo o que vejo, e vejo as cenas quando as escrevo". Mesmo as imagens de Tezza estão sempre ligadas a algum objeto do mundo físico, como a comparação, renitente, que faz entre a lógica e um ônibus - pois, uma vez que nela embarcamos, já não temos mais controle sobre seu percurso. Breve Espaço entre Cor e Sombra tem pequenos contos intercalados entre os capítulos e cada um deles vem nomeado exatamente como um quadro. O primeiro a aparecer é Crianças, um óleo sobre tela de 1,74 m x 0,81, da coleção de Richard Constantin. O romance guarda ainda, como quase sempre acontece nos relatos de Tezza, elementos da narrativa clássica de suspense. "O suspense é para mim a exata ilustração de um mundo que não está pronto", ele diz. "Nesse sentido, é um gênero moderno, pelo que traz tensão à narrativa".

Tezza escreveu seu romance entre maio de 1996 e junho de 1997, trabalhando três horas por dia, sempre das 2 às 5 da tarde, quando os filhos estão na escola. Nesse horário, ele já deu suas aulas matutinas na faculdade, já almoçou, tirou uma breve sesta de meia-hora e a casa está silenciosa. Escreve a mão, em cadernos escolares de formato grande, e nunca mais que uma página de caderno por dia. "Na maior parte dessas três horas de trabalho, eu ando pela casa e tomo café", descreve. "Escrever exige um certo ritual", diz. Tezza começa, este ano, um doutorado em Letras na Universidade de São Paulo, experiência que parece mobilizá-lo, mas que lhe dará mais tempo para escrever. Continuará, contudo, a viver em Curitiba.

Momentos de beleza - Breve Espaço entre Cor e Sombra é uma reflexão sobre a arte da composição, seja ela de um quadro, de um livro, ou do que for. É também um livro sobre inutilidade da arte, aspecto que ainda assim não perturba o desenrolar do romance. Aqui vale recordar uma reflexão de Richard Constantin, feita ainda nas primeiras páginas: "Ninguém pede para você pintar, como ninguém pede que você escreva; o mundo quer advogados, médicos, engenheiros, porteiros, empregadas domésticas, encanadores. Na esmagadora maioria das vezes um eletricista é mais útil que Shakespeare". Mas, se é inútil, nem por isso a arte é estéril. Um livro como Breve Espaço entre Cor e Sombra fornece-nos aqueles delicados momentos de beleza, sem os quais o mundo seria mais banal. O mesmo Tato Simmone, em uma de suas confusas meditações, acaba concluindo: "A arte é a ética que nos resta; não adianta lamentar; é a única". De fato, num mundo inconstante como o nosso, cheio de espíritos perfurados, poucos são os sedativos que aliviam o incômodo de existir. Um deles é a leitura de um bom romance como o que Tezza nos oferece.



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