JORNAL DA TARDE
São Paulo, 18 de abril de 1998


TEZZA EXPÕE DILEMAS DA REPRESENTAÇÃO

Em novo livro, o escritor dessacraliza o mundo da arte e convoca seus personagens para a complexidade dos relacionamentos

Por José Guilherme R. Ferreira

Você quer pintar o mundo ou a parede?
A pergunta, desferida por um abmíguo colecionador, de retórica barroca, parece mesmo querer incendiar a alma de um jovem e angustiado pintor, na sua recorrente crise de imaginação. Tato Simmone, 28 anos, está fragilizado com a morte do mestre Aníbal Marsotti (o mesmo que definira seu figurativismo como "rastaqüera"), e equilibra-se com mais desconforto ainda nas linhas de seus desenhos, às voltas com os abismos existentes entre as obras-primas e aquelas nascidas na mediocridade.
Pronto para o bote está o mefistofélico Richard Constantin, que se oferece para retirá-lo do atoleiro. Senhor de si na direção de um possante carro japonês (esse diabo é um sofista até na sua exibida modernidade), poderá Mr. Constantin desencalhar o jovem Tato?

Está criada, assim, uma das tramas envolventes que sustentam a narrativa de Breve Espaço entre Cor e Sombra, novo romance do escritor radicado em Curitiba Cristovão Tezza. Professor de Língua Portuguesa na Unviersidade Federal do Paraná, Tezza, que já pontuou algumas de suas obras com discussões sobre o universo literário, agora põe em cena o mundo das artes, com todos os dilemas da representação: da precisão ao devaneio da cor, da dramaticidade à diluiçãodo desenho, do equilíbrio à capenguice da composição, da luz à sombra. E sempre a questão do espaço.

Em Trapo (1988), um dos seus livros mais reconhecidos pela crítica e pelo público, Tezza faz o relato trágico da vida de um jovem poeta suicida e do destino de seu legado demil páginas inéditas e então incompreendidas. Em Breve Espaço..., seu 11º livro, o personagem central é Tato, pintor custeado pela mãe, que só vendeu um quadro na vida (para sua mãe, uma marchand de Nova York) e que, em dez anos de cavalete, não conseguiu fazer uma exposição sequer.

O que parece haver de comum nesses dois momentos significativos da obra de Tezza é o cenário sombrio da criação artística. O escritor dessacraliza o mundo da arte, convoca seus personagens para a realidade crua do dia a dia e para a complexidade dos relacionamentos humanos. Nada mais exemplar do que a ladainha de recados que Tato recebe na sua secretária eletrônica - vozes de verdadeiros fantasmas, velados pela luzinha vermelha do aparelho: o pai bêbado e a mãe blasé.

O desnudamento sem pudores do universo das artes é feito com humor sarcástico. Essa tem sido, aliás, juntamente com a criativa construção de suspenses, a técnica marcante do autor.
Na boca de Richard Constantin, tiradas cortantes e divertidas revelam a versão mais visível desse senso de humor. Inspirados em personagens e conceitos-chaves da história da arte, esses disparos desafiam as definições clássicas e ciram instigantes "verbetes", fora de qualquer ortodoxia. O que importa nesses casos, mais que o rigor das definições e opiniões, é o que eles têm de combustível para a "maquinação" de Constantin.
O marchand conhece como ninguém a vaidade dos artistas - essa "face mais visivel da arte". Por que então não provocar Tato, num processo de conquista? Afinal, a morte do guru Aníbal, por quem Tato nutria uma relação de amor e ódio, pode ser mesmo um recomeço.

Constantin não perdoa: sobre a figura de um menino voando, umdos elementos do quadro mais famoso de Tato, joga-lhe na cara: É um pasticho. E não pára: Depois de Chagall, ninguém mais consegue voar com naturalidade. (...) Tiepolo! Tiepolo também sabia voar. Mas naquele tempo era mais fácil, eles acreditavam em anjos. O marchand usa o exemplo de Chagal para falar da suposta preguiça de Tato. Você é um ótimo desenhista, e isso pode estragar a tua pintura, pelo conforto da facilidade do traço. Tato, mais que um desenhista incomodado, resite à abstração.Está aí mais um prato cheio para Tezza esmiuçar: o conflito das linguagens. No tiroteio verbal de Constantin, sobra para todos.
Quem nos diz, por exemplo, que Mondrian é um gênio e não um monótono pintor de azulejos! Ou ainda: Esse pessoal, Oldenburg, Warhol, toda a pintura pop de uma piada só é o realismo socialista dos Estados Unidos, uma chatice cheia de mensagens edificantes mal-disfarçadas.

Nosso demo, principalmente na parte inicial do romance, é o dono da cena com seus arrebatadores quase-monólogos. Tato, o narrador em primeira pessoa, chega a comentar as enxurradas reflexivas de Constantin, sem conseguir esconder o constrangimento. Afinal, o que faria o leitor se recebesse o seguinte conselho: Caráter sim. Escrúpulos não. Escrúpulos, jamais. Venda a mãe, se for preciso. Traia o amigo, quando necessário. No limite, mate. Não deixe absolutamente ninguém tocar na sua obra.

A falta de ética, as mazelas do mercado, o confronto entre o verdadeiro e o falso também são centrais e amarram com suspense o romance de Tezza. Em Breve Espaço... barbaridades são feitas em nome da decifração do maior enigma do livro: seia realmente falsa a cabeça de pedra de Modigliani, incluída no acervo de Constantin. Algumas pistas são dadas pela própria filha do demo, a bela Ariadne, que revela, durante uma dessas festas de artistas, marchands e potenciais compradores de arte, o conteúdo fake da coleção do pai.

O contraponto à verve e práticas de Constantin se dá por meio de uma história paralela, contada como se fosse uma extensa carta em capítulos, escrita por uma não menos atormentada crítica de arte italiana, dez anos mais velha que Tato. Vidrada no jovem pintor, que conhecera numa cronometrada visita a um museu de Nova York, seu discurso confessional também vem em turbilhão. Só que, diferentemente de Constantin, "o apóstolo da falta de moral", a crítica faz uma análise apaixonada e detida dos traços de Tato, a partir dos desenhos que recebera. É cuioso e extremamente poético o jogo que se estabelece entre eles. Nas palavras da italiana, o perfil de Tato vai ficando cada vez mais nítido e rico em detalhes. Ao contrário, nos desenhos que Tato lhe enviara, as linhas vão se esmaecendo e, no final, a italiana pouco se reconhece.

As tramas paralelas dialogam o romance inteiro, até se fundirem num "momento zen". Constantin quer comprar a aloma do pintor. Já a italiana a oferece a Tato algo iluminada pelo amor. Mais uma chance de recomeço.

BREVE ESPAÇO ENTRE COR E SOMBRA, de Cristovão Tezza. Rocco, 266 págs., R$ 26,00.
José Guilherme R. Ferreira é subeditor de Geral do Jornal da Tarde.



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