FOLHA DO PARANÁ
Londrina, 11 de abril de 1998

NO ESPAÇO ESTREITO DAS
RELAÇÕES HUMANAS

Em seu novo livro Cristovão Tezza fala da troca, da interação e das dificuldades da vida em comum

ZECA CORRÊA LEITE

"Breve Espaço entre Cor e Sombra", o novo romance de Cristovão Tezza, que está saindo pela Editora Rocco, coloca em cena um jovem pintor, uma italiana que mora em Nova York e uma cabeça esculpida por Modigliani que vem parar em Curitiba. A cidade passa pela janela do carro, em cenário noturno. Afirma o autor que este é o seu melhor livro. E emenda: "Sou um escritor otimista, acho sempre o último o melhor".
Embora envolvido com "Breve Espaço entre Cor e Sombra" Tezza faz uma pausa, mesmo que timidamente, para um próximo trabalho que terá por tema a fotografia. Está na fase embrionária, mas já começou a se preparar lendo livros sobre a história da fotografia. Ex-contratado da Brasiliense e em processo de saída da Record, o romancista vive ótimos dias com a Rocco, que agendou lançamentos do romance na terça-feira no Rio e na quinta em São Paulo.

A editora pretende reeditar toda sua obra. Iniciará com "Ensaio da Paixão", publicado há 20 anos pela extinta Criar Edições, de Curitiba. "Ali está um outro autor. Uma pessoa muito mais alegre, de uma irreverência brutal, um livro politicamente incorreto", diverte-se.

Tezza está passando o texto para o computador - deve entregá-lo à editora em julho - e interfere somente num e noutro ponto do livro, para. não "desestruturá-lo". Enquanto isso acontece acha tempo para ler "A Vida/Modo de Usar", de Georges Perec, e num volume importado - "Enciclopédia da Cerveja" - retira preciosidades curiosas para um bom bate-papo de boteco, como ele próprio sugere.

"Breve Espaço entre Cor e Sombra": que espaço é esse que consta do título?

E o espaço estreito das relações humanas, que é uma coisa muito forte na minha temática. A troca, a interação, a difícil vida em comum. Ao mesmo tempo o tema do livro é a pintura, o personagem central é um pintor. Então o título chama para isso, parece nome de quadro.

Onde entra Modigliani na sua história?

Tem uma cabeça de pedra de Modigliani que atravessa o livro todo. Ela sai de Roma, vai para Nova York e vem parar em Curitiba. Há muitos anos li numa biografia de Modigliani que quando jovem teria jogado no Fosso Reale, em Livorno, na Itália, umas estátuas de pedra que ele não teria gostado. E foi para Paris. Isso ficou como uma espécie de lenda nas artes plásticas. Por muitos anos alimentei a idéia de fazer uma dessas cabeças aparecer em Curitiba. Aí, no começo do ano passado, fui à Itália especificamente para pesquisar a matéria do livro e descobri coisas curiosíssimas. Por exemplo, Modigliani nunca jogou cabeças de pedra no fosso. Foram estudantes que jogaram as peças falsas. Na Itália transformou-se em comoção nacional a discussão sobre aquelas cabeças, porque grandes críticos de arte disseram que eram verdadeiras.

Essa descoberta mudou seus planos?

Foi muito engraçado: a realidade roubou a minha idéia. Naturalmente a idéia básica se manteve, só que daí sofistiquei a cabeça. A do livro parece mais com uma que está na Tate Galery, em Londres. Esse é o eixo central de duas narrativas paralelas. Uma do Tato Simone, jovem pintor de Curitiba, e outra de uma crítica de arte italiana, que escreve uma longa carta para ele. Essa carta atravessa todo o livro. A italiana e o jovem se viram um único dia, um ano antes, em Nova York. O ponto em comum em tudo isso é a cabeça de Modigliani que está em Curitiba.

Você disse que trabalha com narrativas paralelas...

Trabalho com duas gerações: a italiana é uma mulher da geração dos anos 60 e Tato Simone é uma geraçao mais nova, tem outro sistema de referências e valores. No meio disso tem uma marchand, uma quase vampira... Sao dois ou três dias na vida do Tato.

Pelo que se sabe a vampira é uma rápida citação no livro, mas mesmo assim vale a pergunta: Curitiba está fadada a sempre ter seus vampiros?

Não, não. A referência ao Dalton (Trevisan) aí nao e justa, porque ela é vampira no sentido puramente feminino do termo. Alguém que se aproveita, tira as forças de outra pessoa.

Esse livro tem algum ponto que difere dos demais?

Como sou um escritor otimista acho que cada novo livro que escrevo é melhor que o anterior. Ele amadurece alguns temas meus que são recorrentes: a vida e a morte, a relação mestre/discípulo, a presença da mulher, a relação entre as pessoas, a família. Tecnicamente é um livro maduro, sinto que ele tem um peso diferenciado com relação aos outros. E um livro de um homem mais velho. Estou com 45 anos.

Como é seu processo de trabalho?

Tenho um ritmo estável, não escrevo de rompantes ou de lampejos. Escrevo sistematicamente, esse é um traço da minha literatura. Então passei um ano e meio de todas as tardes, das duas às cinco e meia escrevendo à mão, raramente mais que uma página por dia. O computador entra na segunda versão; imprimo e vou mexer no texto no papel. Não gosto de mexer na tela do computador. Ele é a arte final.

Essa teimosia tem a ver com seu lado mais moço?

Sim, sou integralmente um homem dos anos 60. Curti Janis Joplin, Jimi Hendryx. Passei por todas aquelas fases de uma época. Talvez o fato de escrever a mão seja uma herança daquele bom tempo. Eventualmente meus personagens têm a alma dos anos 60, como a italiana. Ela tem todos os referenciais da época, mas com um ponto de yista europeu. Tato Simone é dos anos 80. É o personagem mais difícil do livro, e embora tenhamos uma certa distância, sou afetivamente muito ligado a ele. Ele me tocou profundamente.

O que o fascina ao escrever?

Não sei exatamente o que me fascina enquanto escrevo, mas pensando sobre o que escrevi posso pensar melhor. São os temas da possibilidade ou a impossibilidade da vida amorosa; a difícil, complicada, torturada relação entre as pessoas - tema que percorre todos os meus livros - o abismo que separa a utopia da realidade.

Qual o espaço real do livro?

O espaço temporal são três dias, de um enterro na quarta-feira a uma festa na sexta à -noite. Ao mesmo tempo tem uma carta da italiana que reconstrói detalhamente um dia inteiro, um ano antes, num museu de Nova York. E ele passa a mandar todo mês um bico de pena de um retrato do rosto dela. Como eles nunca trocaram fotografias, é um bico de pena feito de memória. O rosto dela como que vai se desintegrando mês a mês, até que o último é quase uma abstração. São meia-dúzia de traços só; ela escreve uma carta esperando pelo último retrato, que seria uma página em branco.

Este livro dá uma guinada nos seus trabalhos?

Diria que do ponto de vista da linguagem, da estrutura não. A guinada é de amadurecimento mesmo. Ele é mais denso, mais profundo, mais maduro e mais complexo.


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