|
FOLHA
DE S. PAULO
São Paulo, 11 de abril de 1998
JORNAL DE RESENHAS
A cabeça esculpida
RODRIGO
LACERDA
O
novo romance de Cristovão Tezza, escritor curitibano de
46 anos, pode ser entendido como um ato de resistência.
Isto porque Tezza continua fazendo literatura a partir de recursos
propriamente literários, o que parece uma redundância,
mas não é, tendo em vista a grande influência
que a linguagem cinematográfica vem exercendo sobre os
autores brasileiros.
Nos últimos anos, atingiu-se um ponto de encontro entre
roteiro e literatura cujas principais características,
de tanto serem elogiadas, chegaram a virar chavão: "prosa
ágil", "estilo enxuto", "frases curtas",
"diálogos coloquiais e realistas" etc. Segundo
seus praticantes e defensores, esta seria a única linguagem
estética, e politicamente correta, perante a nova realidade
urbana, e deveria promover uma narrativa "visual", de
conteúdos objetivados, em detrimento daquela que, por sua
preocupação com a sonoridade, ficava excessivamente
presa à forma e acabava descolando-se da realidade, contaminada
por um ranço preciosista.
Aos escritores não comprometidos com essa linha restavam
três opções. Se, além de uma linguagem
diferenciada, buscassem conteúdos ausentes das grandes
cidades _ou pelo menos alterados pelo tempo ou pelo espaço_,
poderiam recorrer ao romance histórico e à literatura
regional. A última alternativa era combinar o cenário
urbano com um ritmo narrativo menos acelerado, dando vez à
exposição da subjetividade dos personagens, como
só a literatura pode fazer, e conciliar a verossimilhança
da linguagem com um estilo mais fluente, atento à música
e à sonoridade das frases. Em seu novo romance, Cristovão
Tezza encontra justamente esse equilíbrio.
O protagonista de "Um Breve Espaço entre Cor e Sombra"
é um jovem pintor, Tato Simmone, residente em Curitiba,
que narra em primeira pessoa. Ele é uma figura crítica,
precocemente cético. Seu espaço é o da razão
ou, nos termos do romance, da luz, da cor. Neste plano narrativo,
a ação poderia ser dividida em quatro momentos:
o enterro do ex-mestre de Tato, com quem rompera poucos anos antes,
no qual ele trava conhecimento com um marchand, tão fascinante
quanto escorregadio, e com uma jovem, amiga mais recente do falecido
mestre, por quem Tato sente-se atraído; o jantar com a
jovem e sua visita ao ateliê de Tato; a visita do marchand
ao ateliê; uma festa na casa do marchand. Próximos
às visitas, dois arrombamentos, um na casa e um no ateliê
do jovem pintor, lançam a isca policial do romance. Esse
fio de trama leva Tato a uma estátua de Modigliani, uma
cabeça de mulher, cuja autenticidade e proveniência
são duvidosas.
Uma narrativa paralela se constitui a partir de cartas que Tato
recebe de uma italiana, a quem havia conhecido acidentalmente
num museu da Europa um ano antes. Tato as responde com desenhos,
retratos que faz dela. A italiana, porém, ressente-se do
fato de seu rosto gradativamente estar se resumindo a simples
linhas no papel. Ela é uma mulher mais velha, cheia de
cicatrizes sentimentais, solitária, que se apega à
paquera como um instrumento de desabafo e autocomiseração.
Sua narrativa é o espaço dos sentimentos, ou melhor,
das sombras.
Em quatro breves momentos, o livro é interrompido por seções
cujos nomes correspondem aos de quadros de Tato. Sem descrições
ou comentários sobre os quadros, o que se tem são
os episódios oníricos nos quais as telas foram inspiradas.
Com exceção de um. Neste, chamado "Estudo sobre
Mondrian", num lance de prosa experimental, ou concreta,
ou o que outro nome se queira dar, Tezza repete infinitamente
a oposição entre a cor branca e a linha negra. A
oposição fundamental do livro, entre razão
e sentimento, e que no título vem expressa por meio da
cor e da sombra, aqui e no tocante aos retratos da italiana, surge
na oposição entre a linha e a cor.
A fluência do estilo de Tezza o diferencia da prosa fragmentada
de influência cinematográfica. Sua linguagem é
predominantemente culta, sem a obrigatoriedade do coloquialismo
radical como ponte para a verossimilhança, e o livro está
cheio de citações relativas a artistas, plásticos
ou não, abordando ainda questões conceituais da
arte contemporânea. Seus personagens são de regular
para ótimo nível social. Entretanto, seu livro não
chega a ser pedante, alienado ou literariamente obsoleto.
Para evitar esses males, Tezza possui dois trunfos. Um deles,
que não é exclusivo do novo romance, é sua
impressionante sensibilidade para construir figuras jovens. Tato,
no mais recente, ou Trapo, num romance anterior, são extremamente
bem construídos, densos, cheios de idiossincrasias, inseguranças,
às vezes até prosaicas, às vezes até
absurdas, mas que são vividas intensamente e com enorme
realismo.
Também a linearidade apenas parcial dos dois planos narrativos
dá ao romance uma estrutura bastante moderna. Em cada fatia
da ação narrada por Tato, em cada carta da italiana,
há pontos de chegada e de partida, mas a maneira como os
narradores preenchem o intervalo entre eles comporta inúmeras
digressões, avanços e retrocessos, diálogos
que não aconteceram de fato, acontecimentos apenas desejados
etc.
Se alguma coisa ameaça comprometer o brilho do novo romance
de Tezza, esta não diz respeito aos elementos de natureza
propriamente literários que ele conserva em seu estilo,
mas sim à concessão que faz às influências
do cinema. Talvez involuntariamente, o modelo literário
de viés cinematográfico tenha permitido que o enredo
policial tivesse exagerada responsabilidade em seu sucesso, tornando-se
quase obrigatório no dito modelo. Tezza, ao abrir espaço
para uma trama desse gênero, trouxe um corpo estranho para
dentro de seu romance.
Sua trama policial é inteiramente anódina. Os dilemas
do estranho mundo da arte e de seus ainda mais estranhos habitantes
perdem espaço num romance que deveria ser só deles.
Sobretudo, ela não funciona porque suas próprias
regras foram contrariadas. Nenhum estágio da ação
principal necessita dela para acontecer; o protagonista é
inteiramente passivo durante a maior parte de seu desenrolar;
ela termina num anticlímax. Tem-se a impressão de
que o autor procurou fazer uma concessão de alto nível,
mas corre o risco de não agradar nem a gregos nem a troianos.
Se Cristovão foge da linguagem telegráfica
dos roteiros, foi mais difícil ele escapar da exigência
por "plot points", as viradas, e das "costuras",
que o gênero policial permite como poucos. Quando termina,
o enredo policial ainda submete alguns personagens a suas necessidades,
o que também é mais um prejuízo para eles
do que um benefício à estrutura da obra.
A justificativa interna para a existência da trama policial
é a dupla costura que ela promove no conjunto do livro.
De um lado ela tenta ligar a narrativa da italiana ao que está
acontecendo em Curitiba. Na outra, melhor sucedida, a cabeça
esculpida por Modigliani torna-se, ao final, uma ponte para o
reencontro da razão com o sentimento. O livro pode ganhar
em unidade, mas perde em sinceridade. Por sorte, vai muito além
desse imbróglio detetivesco e permanece uma obra de alta
qualidade literária, feita por um escritor que, provavelmente,
se morasse no eixo Rio-São Paulo, estaria ocupando o lugar
que merece entre os grandes escritores da literatura contemporânea.
Rodrigo
Lacerda é escritor, autor de "O Mistério do
Leão Rampante" (Ateliê Editorial).
voltar
|