FOLHA DE S. PAULO
São Paulo, 18 de abril de 1998


Romance vira do avesso o clichê do
policial ''noir''

JOSÉ GERALDO COUTO


À primeira vista, ''Breve Espaço entre Cor e Sombra'', de Cristovão Tezza, parece destinado a engrossar um dos rentáveis filões literários de nossos dias: o dos romances meio policiais, meio eruditos, ambientados entre artistas, marchands e vigaristas elegantes.

Mas a semelhança é ilusória. Quem ler o romance tendo em mente os best sellers de Rubem Fonseca ou do espanhol Pérez-Reverte vai notar que alguma coisa está fora de registro aqui.

A intriga esvazia a si mesma, a narrativa não tem o ritmo sôfrego do policial ''noir'', as referências eruditas não se levam a sério e, mais importante que tudo, os personagens não se reduzem às unidimensionais ''talking heads'' do "entretenimento com verniz de alta cultura''.

Alguma coisa sempre escapa pelas bordas em ''Breve Espaço entre Cor e Sombra''.
Os personagens são esquivos e cheios de sombras, a começar pelo protagonista-narrador, o jovem pintor Tato Simmone, que pensa estar recomeçando a vida no dia do enterro de seu ex-mestre, o também pintor Aníbal Marsotti, pelo qual nutre uma mistura de amor e ódio, piedade e ressentimento.

A ação se concentra nos poucos dias que se seguem ao enterro de Marsotti.
O pretendido renascimento do protagonista complica-se de uma maneira inesperada e inverossímil.
Entram abruptamente em sua vida novos personagens: um marchand estrangeiro interessado em agenciá-lo, uma mulher sedutora interessada em vampirizá-lo, arrombadores sinistros interessados em apavorá-lo.

Há ainda as cartas de uma italiana perita em arte, que ele conheceu casualmente e por um único dia, em Nova York, e os telefonemas inoportunos do pai (um fracassado que vive no Rio) e da mãe (uma perua que vive nos Estados Unidos).

As cartas da italiana _na verdade uma única carta, cujos trechos são intercalados ao relato de Tato_, mais do que compassar a narrativa, dão-lhe densidade e perspectiva (como quando um desenho se transforma em pintura).

Personagem fugidia e cheia de arestas, a loquaz italiana introduz no livro a imprevisibilidade e a paixão do feminino, fornecendo uma nova escala para a apreciação dos pequenos e grandes dramas de Tato Simmone.

Sim, claro, há uma trama, que gira obscuramente em torno de uma cabeça de pedra erroneamente atribuída ao pintor Amadeo Modigliani.
Tanto a mãe do protagonista como a italiana das cartas têm interesse, por motivos diversos, em dar um sumiço na tal cabeça, que coincidentemente está em Curitiba, na casa do marchand estrangeiro.
A própria inverossimilhança da intriga, repleta aliás de pontos confusos e inexplicados, mostra que, para Tezza, ela só importa na medida em que revela os personagens e seu mundo.

Para Hitchcock, o móvel da ação (que ele chamava de ''McGuffin'') era um mero pretexto para a construção do suspense.

Neste romance de Cristovão Tezza, o próprio suspense é um pretexto _ou, antes, um instrumento_ para pegar os personagens no contrapé e, com isso, revelá-los por inteiro.
(JGC)

Livro: Breve Espaço entre Cor e Sombra
Autor: Cristovão Tezza
Lançamento: Rocco (tel. 021/507-2000)
Quanto: R$ 26 (266 págs.)



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