CULT – REVISTA BRASILEIRA DE LITERATURA
Abril de 1998 - número 9


VIDAS PARALELAS

HEITOR FERRAZ


Jamais consegui viver sem um mestre. Jamais, talvez, seja um exagero. Com essas frases começaria seu novo romance. Deu mais um gole no chopp que estava tomando e ainda contou que uma coisa, pelo menos, era certa, que seu personagem seria um jovem pintor. Ele mesmo já havia enveredado pelas artes plásticas quando tinha uns 20 anos. O projeto não deu certo, mas pôde aprender alguma coisa sobre cor e forma, além de conseguir pendurar em sua parede um Matisse, um Van Gogh ou um Kokoshka. Falsificados, é claro.
Raramente o romancista Cristovão Tezza, que mora em Curitiba há mais de trinta anos, consegue arranjar uma brecha na sua vida de professor de Língua Portuguesa, na Universidade Federal do Paraná, pai de família, autor de livros paradidáticos, para passar uns dias em São Paulo. Sua última visita mais longa foi em 1995, quando estava cumprindo uma rigorosa agenda de divulgação de seu ro­mance Uma noite em Curitiba, que estreava seu contrato com a editora Rocco.

Foi durante essa visita, numa conversa com amigos na Cristal, tradicional chopperia das Perdizes, que ele contou que já tinha tudo engatilhado para um novo livro. Tinha a primeira frase que, para ele, é sempre o início de tudo, mesmo que ela não resista às revisões que faz de seus manuscritos (pois Tezza é assim, escreve à mão, com caneta Bic, numa folha amarela, fininha). Ela dá o "sotaque" do livro. "Fica tudo muito vago e incerto, até que a linguagem - uma frase concreta -acontece." Foi assim com Juliano Pavollini ("Eu tinha tudo para dar certo, exceto a família"); com Uma Noite em Curitiba ("Escrevo este livro por dinheiro") e agora o mesmo se dá com seu novo livro, o 11º em sua carreira. A frase "jamais consegui viver sem um mestre" foi a pedra de toque, mas acabou sendo limada, pois o próprio romance tomou rumos inesperados.
Três anos depois daquele encontro na roda de chopp, Cristovão Tezza, 46 anos, entrega 264 páginas de mais uma envolvente narrativa: Breve espaço entre cor e sombra. O jovem pintor sobre o qual ele havia comentado e que lhe deu um belo trabalho de pesquisa, pois passou dias lendo vários manuais e livros específicos de pintura, ganhou nome (Tato Simonne, 28 anos), família, amigos, um belo ateliê e assumiu a narrativa de Tezza.

Claro que nunca, como diz o romancista, o projeto se cumpre à risca. "Como sempre, o ato de escrever me encaminhou para uma outra história", conta. Sua idéia inicial era apostar na relação mestre/discípulo, mas aos poucos o fio da narrativa foi ganhando uma espécie de autonomia. O meu texto avança por instinto, depois de um projeto mental mais ou menos organizado. Isso não quer dizer que seja um processo livre e solto, a serviço de um inspiração avulsa, mas tem algum grau de autonomia. É como se, depois de um arcabouço mais ou menos sólido, ou confiável, eu me visse circunscrito aos limites do universo que eu mesmo criei."

Porém a relação do jovem pintor com seu mestre não ficou ocultada. Ela surge e dá substância para vários mo­mentos do romance. Mas a história não fica restrita só a isso. Tezza, que sempre teve um gosto forte pelo suspense (basta ler alguns de seus romances), vai criando várias situações, abrindo pe­quenos enigmas que pouco a pouco vão sendo desvendados, mas que acabam servindo como uma isca segura para prender o leitor a cada página do livro.

Em Breve espaço entre cor e sombra é o mundinho das artes plásticas que acaba se destacando. Tato tinha seu "guru", Aníbal Marsotti, mas este morre (o romance começa exatamente no enterro de Aníbal, numa manhã ensolarada); vive cercado de quadros e pessoas ligadas às artes. Sua mãe, uma marchand em Nova York; seu novo amigo, Richard Constantin, é um colecionador e sonha em agenciar o jovem pintor; uma de suas amigas, uma mulher italiana, que lhe escreve uma longa carta, é crítica de artes plásticas e vive um drama amoroso misturado a uma crise de consciência, pois julgara mal uma obra de arte (aqui, leitor, é melhor não dizer muito para não estragar o prazer da narrativa criada por Tezza).
Com esses personagens, mais uma outra amiga, a gordinha Dora, e uma mulher aparentemente misteriosa, chamada pelo narrador de "a vampira", Tezza vai criando falsas pistas, uma invasão ao ateliê e à casa de Tato, uma cabeça de pedra de Modigliani. São elas que formam a base do suspense que engolfa o leitor, porém a narrativa vai sendo entremeada de discussões e reflexões sobre arte e, claro, sobre a própria vida. E tudo isso articulado de uma maneira admirável e madura.

O uso freqüente do suspense nasceu em Tezza a partir das leituras que fez desde a infância. Foi um leitor voraz de romances policiais, começando por Agatha Christie ("e hoje não sei como gostava tanto dela! que chatice!"), depois Conan Doyle, Simenon, Chandler e Patrícia Highsmith. "Não sei se foi um bom começo, mas disso tudo ficou um gosto pela narrativa e também pelo suspense", conta. "Eu sinto o suspense como um valor moderno fundamental. O pressuposto do suspense é o fato de que as coisas podem ser diferentes, há escolhas. Quando há suspense, o mundo não está pronto. E se há um lugar privilegiado para ele demonstrar sua completa incompletude, seu inacabamento primordial, esse lugar é o romance", explica.

No novo livro, surge uma bela cabeça de Modiglianí parafusando os capítulos, mantendo a tensão narrativa. A idéia surgiu quando Tezza havia lido uma biografia de Modigliani. "Ele teria jogado no Fosso Reale de Livorno, na Itália, algumas cabeças de pedra que não o satisfizeram. Essa imagem, ficou na minha cabeça: alguém jogando fora sua própria obra", relata Tezza. E enquanto a estrutura do romance se dclineava, uma dessas cabeças acabou despencando dentro do próprio livro. "Entusiasmado com a idéia, fui pesquisar, passando um mês na Itália e, desgraçadamente, descobri que o que eu tinha imaginado, uma cópia falsa dessa peça, acontecera de verdade." Em julho de 1984, ano do centenário de nascimento do pintor, quando a prefeitura da cidade dragava o fosso em busca das peças lendárias, estudantes jogaram algumas cabeças de pedra, feitas em casa (houve ainda uma outra, arremessada como protesto por um militante de esquerda). Quando descobriram as cabeças, formou-se um verdadeiro alvoroço na cidade e, claro, em toda Itália - pois artes plásticas para eles é assunto tão quente quanto futebol para nós. Críticos importantes, como Giulio Carlo Argan, chegaram até mesmo a manifestar a autenticidade das peças, que, na verdade, eram falsas.

Uma das marcas registradas dos romances de Tezza é a alternância de capítulos, ou seja, duas histórias paralelas que acabam por se encontrar. Em Breve Espaço, há duas narrativas distintas, uma de Tato e outra da mulher italiana. Essa alternância, nunca gratuita, cria duas vozes diferentes que dialogam durante o livro. De um lado, o relato, cheio de ações, de um jovem de 28 anos; do outro, a reflexão torturada de uma mulher de 40, debatendo-se com seus desejos e procurando virar uma página de sua vida.

Essa técnica, como diz o romancista, surgiu meio por acaso dentro de sua obra. "Durante uma fase de minha vida, escrevi muitos poemas e, um dia, irritado com minha produção, planejei escrever uma série de assa­ssinatos poéticos, sob o título 37 modos de assassinar a poesia, como paredão, estrangulamento etc." Esses poemas engavetados acabaram sendo reapro­veitados no romance Trapo. "Isso me deu uma duplicidade viva dos pontos de vista, das linguagens diferentes, e passou a ser um modo que me possibilitava ver o mundo. É como se, de fato, nenhuma palavra tivesse vida solitária - basta escrevê-la e aparecerá outra contradizendo-a." Uma narrativa acaba iluminando focos obscuros da outra. E também, no presente caso, desfazendo o nó da cabeça de Modigliani.

Há ainda alguns "quadros-narrativos", ou seja, capítulos quase oníricos batizados com os nomes dos quadros de Tato Simonne. Para Tezza, essa foi a forma que encontrou de colocar o leitor dentro da discussão sobre a obra de Tato, sem precisar lançar mão de aspectos visuais. "O único modo de eu apresentar os quadros de Tato ao leitor, sem usar a fotografia ou a descrição pura e simples, seria transformá-los em narrativas ou em puros jogos sintáticos da linguagem escrita, ou ainda a simulação de sintaxe pelos sinais de pontuação, porque na verdade só há frases nominais, sempre as mesmas duas ou três", explica. Em suma, como ele mesmo diz, os "quadros" no livro são um exercicio sobre a intransponibilidade essencial dos códigos, ou sobre sua natureza incompatível.

Seu universo ficcional é tão forte que nem mesmo Tezza consegue fugir dele. Durante a conversa para essa matéria, o autor, modestamente e sem­pre bem-humorado, confessou sua paixão por uma das personagens do romance, uma garota de 20 anos, chamada Ariadne, que, quando entra na narrativa, rouba completamente a cena. "Eu me apaixonei perdidamente por ela." Fica difícil não fazer coro com o autor: Ariadne conduz o final do livro com um charme estonteante. E é isso que um escritor sempre quer: ver o leitor dentro do livro, pois ele mesmo já está lá.

Heitor Ferraz
Jornalista e poeta, autor de
Resumo do dia (Ateliê Editorial) e
A mesma noite (Sette Letras)



As delícias da Contracultura

No depoimento a Heitor Ferraz, Cristovão Tezza
fala do começo de sua trajetória literária

Comecei como todo mundo, escritor ou não escritor: escrevendo poesia. A ficção nasceu no momento em que eu estava praticando datilografia, autodidata, lá pelos 12 ou 13 anos. Cansado de repetir aquelas fórmulas - asdfg asdfg - ou aquelas evocações esotéricas - Kant nasceu em Koenisberg, Kant nasceu em Koenisberg, Kant nasceu em Koenisberg - para praticar letras específicas, passei a transcrever diálogos de histórias em quadrinhos, e quase imediatamente a escrever minhas próprias histórias. Meu primeiro personagem era uma espécie de Mickey que vivia na Floresta Amazônica, onde, como se sabe, há leões. Acho que minha primeira história mais ou menos completa se chamava A revolução das formigas, e tinha toques de realismo socialista - naquele tempo eu vivia rodeado de comunistas e de agitadores estudantis, todos meus parentes ou amigos deles, que eu ouvia com devoção. Cheguei a levar um original meu para uma gráfica, a Lítero-Técnica, da rua Alferes Poli. O bom proprietário prometeu publicar de graça, nos intervalos do serviço... Foi fantástica a sensação de levar para casa as primeiras provas em linotipo, tiras compridas de papel jornal, dos primeiros capítulos impressos. Mas, relendo, até eu percebia o quanto aquilo era ruim, e reescrevias provas tantas e tantas vezes que o bom e sábio gráfico desistiu de proteger o novo Balzac.

Depois, lá pelos 16 anos, conheci o romancista Wilson Rio Apa, que então começava a organizar um grupo de teatro em Curitiba. Ele tinha acabado de publicar A revolução dos homens, pela editora José Olympio, e em pouco tempo se tornou meu "guru". Fiquei muito espantado, no nosso primeiro encontro, numa noite de poesia promovida pela AABB (Associação Atlética do Banco do Brasil), onde eu tinha ido declamar uma catilinária rimada, quando ele me disse que os Beatles - aqueles cabeludos alienados a serviço do imperialismo - eram gênios. Rapidamente descobri as delícias da contracultura, que de certa forma me definiu. Nessa época, trabalhei em algumas peças de teatro, aqui e ali, como contra-regra, iluminador, bilheteiro, o que pintasse. Muitos sonhos, todos à margem. Contra a Família, a Propriedade, a Tradição e os Bons Costumes. Em 1970, terminando o segundo grau, tentei ser piloto da Marinha Mercante, abandonei o curso (no Rio de Janeiro), voltei para Curitiba e me integrei à comunidade de teatro do "barbudo", como a gente chamava o Rio Apa. Foi uma grande fase da minha vida - muito dela está no romance Ensaio da Paixão (que será reeditado esse ano pela editora Rocco), uma recriação daquele lmundo comunitário escrita alguns anos depois. Nesses anos, de 70 a 76, cheguei a escrever e encenar algumas peças de teatro, e acho que o teatro influenciou bastante minha literatura. O ano de 75 passei em Portugal, viajando como mochileiro pela Europa.

Mais tarde, em 77, acabei entrando na universidade e minha vida foi tomando outro rumo. Ao mesmo tempo, minha literatura começava, finalmente, a "tomar corpo", com os contos de A cidade inventada (depois de três romances malogrados e destruídos), o romance Gran Circo das Américas e daí por diante, sem parar mais - menos biografia, mais obra. É como se o escritor, para escrever, tivesse de parar de viver - mas isso, claro, é só uma frase de efeito.





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