Gazeta do Povo - Caderno G
Curitiba, 17 de novembro de 2011
"O escritor está solto ao acidente"
Yuri Al'Hanati
Descobrir o lado contista de Cristovão Tezza costumava ser uma tarefa difícil. Além de vasculhar sebos em busca de suas primeiras e únicas antologias, A Cidade Inventada e A Primeira Noite de Liberdade, era preciso ficar atento a sites, revistas e compilações nas quais o escritor publicou boa parte dos contos que agora entram em sua bibliografia oficial. O livro Beatriz, que o escritor lança hoje, a partir das 19 horas, na livraria Arte & Letra, reúne sete contos – dois inéditos – e um prólogo. As histórias giram em torno de Beatriz, personagem cujo universo Tezza consolidou em seu romance anterior,Um Erro Emocional. Com ele, podemos verificar que o incontestável valor literário de suas premiadas obras – seu maior sucesso, O Filho Eterno, é o único romance brasileiro entre os indicados ao prestigiado International Impac Dublin Literary Award, da capital irlandesa – permanece na narrativa curta.
Originalmente batizada de Alice, a personagem Beatriz – um nome literariamente menos batido, segundo o autor, que não esquece a Beatriz de A Divina Comédia – é, em alguns contos, uma revisora de textos que, entre uma proposta indecente e outra, apaixona-se e reflete sobre a vida. “Ela pensa muito e tem uma vida interior mais rica, embora seja capaz de grandes loucuras eventuais”, explica o autor, que também escreve crônicas para a Gazeta do Povo – seus textos são publicados todas as terças-feiras.
Nesta entrevista exclusiva, Tezza falou sobre a personagem, a influência da crônica na sua escrita e sua rotina como escritor.
Com exceção de dois contos, os textos de Beatriz já haviam sido publicados anteriormente. Como foi o processo de preparação dos textos para este livro?
O que me impulsionou a organizar o livro foi essa ideia da gênese da personagem de Um Erro Emocional. A ideia de um livro de contos que giram em torno da mesma personagem me pareceu boa. Além disso, queria fazer um prólogo para discutir um pouco a literatura, algo que já é uma preparação para o livro que estou escrevendo agora e que vou entregar em dezembro para a editora. Além de trocar o nome dos personagens, fiz uma revisão estilística. Pouca coisa.
O seu prólogo está muito impregnado da sua veia de cronista. O exercício da escrita semanal influenciou sua linguagem?
Sim. Eu sou um cronista tardio, estou escrevendo há três anos, e a crônica afetou a minha linguagem de ensaio. O treinamento semanal de comentar objetivamente numa linguagem mais solta para o leitor felizmente quebrou alguns cacoetes acadêmicos que certamente eu teria se fosse escrever esse prólogo há dez anos. Mas o prólogo foi feito para ser uma coisa mais solta, uma conversa com o leitor. Já no livro sobre a prosa que estou fazendo, a crônica me influenciou de maneira altamente positiva na capacidade de falar de assuntos extremamente complexos para o leitor comum.
O livro Beatriz é uma expansão do universo de Um Erro Emocional. Tem-se ali a Beatriz e o Paulo Donetti em outras situações. A situação é vagamente similar ao que você já tinha feito em Juliano Pavollini e O Fantasma da Infância. Quando o senhor optou por esse caminho?
Não tinha pensado nisso. Não consigo me livrar de mim mesmo! (risos). Mas acredito que o escritor não seja dotado dessa objetividade mortal, de saber exatamente o que vai fazer. São impulsos que me dão as ideias. Assim como uma palestra me deu a ideia de escrever o primeiro conto. São coisas acidentais, e o escritor de ficção está solto ao acidente.
As situações em que Beatriz se envolve geralmente partem de – ou culminam em – uma proposta de trabalho. Que aspectos da profissão de revisor de texto abrem possibilidades para tantas situações?
Eu fui revisor de texto anos a fio. Algumas situações aconteceram comigo, como eu começar a revisar um texto, me empolgar e na hora de passar o preço o cliente recusar. O fato de eu colocar essas coisas na cabeça de uma mulher foi uma liberdade romanesca fantástica, porque assim eu não corro o risco de entrar num biografismo confessional. É uma profissão muito procurada hoje em dia, o Brasil está se alfabetizando, a palavra escrita voltou ao seu lugar de importância. A Beatriz sintetiza minha experiência nessa área.
O livro explora também a rotina do escritor, de participar de palestras e bate-papos com leitores. Agora que o senhor está se dedicando exclusivamente à literatura, como encara esse mundo?
É uma espécie de minicatarse o que escrevo sobre esse universo. Claro que não se pode fazer uma leitura literal, se não ninguém mais me convida pra nada (risos). Gosto de brincar com isso. É uma situação dramática muito interessante literariamente, por que não explorá-la? Você vai para Rondônia, Amapá, Acre, Tocantins... De repente você está conhecendo gente e rodando o país. Nos últimos anos, há muita oferta para o escritor falar, em simpósios, mesas redondas, etc. Quando eu saí da universidade, foi muito pesado. Dá aquela ansiedade e uma insegurança de não ter mais o salário de professor, então fui aceitando tudo. Agora não, preciso administrar meu tempo, senão não consigo escrever nada. E só consigo escrever em casa, no meu canto.
Beatriz tem um espírito muito hesitante e introspectivo, já explorado anteriormente em Um Erro Emocional. Por que o senhor optou por essa linguagem?
Primeiro, pela a fidelidade à personagem. Não posso inventar uma Beatriz nova para esse livro. Ela é tímida, é introspectiva e pensa muito antes de falar. A principal razão para isso é que ela é curitibana. Ela tem o jeitão da cidade. Pensa muito e tem uma vida interior mais rica, embora seja capaz de grandes loucuras eventuais, como em Um Erro Emocional. O outro aspecto é que essa prosa reflexiva sobre um instante presente, sobre a vida que se leva, é uma coisa que surgiu muito forte na minha literatura desde O Fotógrafo. Desde então eu venho desenvolvendo essa linguagem, porque é um momento de crise também, um momento de reflexão da vida e do Brasil. E eu estou passando por isso, por momentos de transformação e poucas certezas. Isso se reflete na linguagem. A linguagem não mente.
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