Musa na mesa
11/03/2012


Variações de um procedimento narrativo

Ricardo Silvestrin


Dois livros de contos editados em 2011, um no Brasil, outro no Uruguai, apresentam um mesmo procedimento narrativo, cada um ao seu modo. O livro brasileiro é Beatriz, de Cristovão Tezza. O uruguaio, escrito por um autor argentino que nasceu em 1977, Manuel Soriano, chama-seVariaciones de Koch.

O procedimento em comum aos dois foi fazer todos os contos com a presença de um mesmo nome de personagem. Digo um mesmo nome porque, no livro do Manuel Soriano, o que se mantém é apenas o nome, já que cada personagem é outro, com seus conflitos, suas características, sua biografia breve que se entrevê pela narrativa. Daí o título com a palavra variações. Tezza, por sua vez, usa a mesma personagem, Beatriz, em todos os contos.

As variaciones comportam algo que permanece e algo que se altera. Do contrário, não poderia haver variação. Tem que se variar em relação a algo. O que permanece em Koch, em todas suas diferentes realizações, é que estamos sempre diante de alguém com cerca de trinta e poucos anos, um homem. Mais: um homem que vive a dois passos do real. Há um distanciamento crítico, irônico, que se transforma num verdadeiro abismo entre as coisas vividas e a percepção do absurdo de vivê-las. Esse sentimento do trágico que se esconde na vida simples, no dia a dia não se expressa numa ação extraordinária. Não há uma revolta, uma tomada de atitude numa direção contrária ao que a vida vem propondo. O que a vida propuser será, no fundo, a mesma coisa.  As pequenas alegrias que vêm com as coisas boas também são vivenciadas pelas variações de Koch como variações do trágico que é viver.

Em virtude disso, as tramas ganham interesse mais pelo ponto de vista que espreitamos junto com o narrador do que pelos fatos em si. Há um grande clima de crônica, de cotidiano. Mas, como contos que são, não estão como na crônica para revelar o pitoresco, o comum a todos, e sim, o abismo em que caímos junto com Koch em plena luz do sol.

Para o leitor brasileiro, talvez até do sul, como eu, há um sabor especial em participar com os personagens da vida em Buenos Aires e Montevidéu ou, ainda, no primeiro conto, de uma aventura de carona com o primeiro Koch do livro e sua namorada pelas praias de Santa Catarina: “Cruzaron la frontera y caminaron. Siguieron la ruta hasta dar con una estación de servicio. El intenso olor a alcohol del combustible los hizo sentir en Brasil. Bemvindo, dijo ella y sonrieron.”.

Outra passagem para divertir a nós, brazucas, com o gol anulado pelo bandeirinha argentino Taíbi, partida vista por Koch numa repetição do jogo na tv quinze anos depois: “Hay gol de Boca. El grito del relator me saca de mi ensoñación, pero luego se calla y la cámara vuelve a mostrar Taíbi, convencido, em una postura casi hitleriana, sosteniendo una bandera en su mano derecha. Me había olvidado de este gol anulado. La repetición demuestra que el jugador estaba habilitado: el gol era válido. Taíbi se equivocó. Por las parlantes del televisor se siente el canto de la tribuna: Taíbi hijo de puta/la puta que te parió, y los versos se repiten, con mayor énfasis, siguiendo la melodía de Cidade Maravilhosa”.

Beatriz, ao longo dos contos do livro de Cristovão Tezza, vai vivendo diferentes situações. Da soma desses eventos, temos um panorama da sua vida: seu casamento desfeito, seus novos casos que não dão certo, sua profissão, as frias em que se mete, até o final, no último conto, quando o destino lhe traz uma nova chance de ser relacionar com alguém legal.

Diferentemente de um livro de contista, aqui temos contos de um romancista. Há uma necessidade de compor um todo narrativo. No entanto, por serem contos, cada história guarda sua lógica, sua vida própria. Não podemos vê-los como capítulos de uma sequência. A não ser pelo último que soa como o desfecho depois de tantos desencontros na vida da personagem.

Outra característica do romancista, do escritor de histórias longas, está num recurso usado em alguns dos contos. Há uma história maior, que já aconteceu, mas que nós e algum personagem vamos descobrir juntos – como em Viagem e Beatriz e a velha senhora. Como se o conto não se contentasse em narrar apenas o que está ali, aos nossos olhos, no presente. O relato é a porta para toda uma trama enorme, que poderia ter sido escrita como um romance e que não foi.  Já contos como Um dia ruim ou O homem tatuado, por exemplo, nos levam pela mão do presente.

Também o criador de tramas se sobressai no livro. Os contos são histórias em que o ocorrido é o importante. Mesmo que haja sempre um narrador capaz de analisar o que acontece, o acontecido tem reviravoltas e um desfecho que traz uma novidade ao que vinha sendo contado.

E há um narrador atrás do narrador. Um “meta-narrador” que se põe, em vários contos, a analisar qual seria a melhor maneira de dizer ou de narrar algo, com críticas aos clichês narrativos e, em alguns casos, pedindo permissão para usá-los. Esse ponto e a exploração de uma personagem única dão ao livro um ar de experimento. O narrador experiente, competente, cheio de habilidades, exercita aos nossos olhos a possibilidade de contar e de formar um livro com essa personagem.

Mas o projeto do romancista, a sonhada unidade, tem os seus percalços. Pois, se pensássemos como capítulos, o mais forte no primeiro conto – um hipotético primeiro capítulo – é o relato de um escritor e a sua fala contra o enfado que viraram os encontros de escritores com leitores no Brasil, em feiras, eventos, simpósios. Esse personagem tem mais riqueza, mais contradições, mais potência e causa mais empatia (pelo menos a mim) do que a Beatriz, que aparece só no final do conto. Tanto ele é forte que volta no conto Viagem. Já Beatriz, a que sobrevive no resto do livro, mais reage do que age,  transformando-se em vítima dos fatos que a assolam. Depois do penúltimo conto, Um dia ruim, em que ela é atacada por um cão furioso na casa de um velho maluco, eu já estava lembrando a frase de uma camiseta que meu filho adolescente usa: “Só me fodo nessa merda.”.

Mas eis que o romancista afirma sua protagonista com o último relato, o mais longo, em que ela ganha em densidade e nos comove – ganhando também um simpático final para toda sua agonia. Esse desfecho devolveu ao livro de contos a unidade almejada pelo criador de tramas longas. Depois da heroína sofrer e sofrer – o que agora soa como proposital e passa a me agradar -, ela encontra um novo modo de estar no mundo, começando finalmente a agir.

Há um prólogo em que Tezza mostra como foi descobrindo a personagem, trabalho que acabou gerando seu romance Um erro emocional, estrelado por nada mais, nada menos do que Beatriz: “Os contos de Beatriz são, de certa forma, não uma continuação de Um erro emocional, o que não teria sentido, mas as suas premissas.”.

 

Ricardo Silvestrin nasceu na cidade de Porto Alegre (RS), em 1963. É poeta e escreve contos, crônicas e romances. Também é compositor e integra a banda os poETs. É colunista do jornal Zero Hora e apresenta, na rádio Ipanema FM, o programa Transmissão de Pensamento. Recebeu o Prêmio Açorianos pelas obras O menos vendido (Nankin, 2007) e Palavra mágica(Massao Ohno, 1995), para adultos, e Pequenas observações sobre a vida em outros planetas(Salamandra, 2004), para as crianças. Pela Cosac Naify lançou Transpoemas (2008), uma série de poemas sobre meios de transporte, de carro a prancha de surf, de metrô a tapete mágico.

E-mail: ricardo.silvestrin@globo.com


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