Valor Econômico - Cultura & Estiloão
São Paulo, 9 de dezembro de 2011
"Beatriz", um acerto ficcional
Cadão Volpato
Desde que o romance "O Filho Eterno" levou todos os prêmios literários importantes de 2008, a vida do veterano Cristovão Tezza mudou, e não foi só pelo dinheiro arrecadado, que lhe permitiu deixar de dar aulas para se dedicar à escrita.
"O Filho Eterno" é um marco na carreira do ficcionista. Ao usar a síndrome de Down como tema, ele parece ter chegado ao coração das pessoas, sem que para isso tivesse que afrouxar as amarras seguras que vêm comandando as suas narrativas desde a estreia, nos anos 1970. Tendo um filho com a doença, seria natural que mais cedo ou mais tarde ele tentasse encarar o fato do ponto de vista do escritor - e ele o fez com arte. O sucesso, no entanto, foi uma surpresa, e Tezza teve que lidar com ele.
O primeiro livro depois do dilúvio foi "Um Erro Emocional". Tezza parecia ter voltado para o seu hábitat natural, em que tanto a paixão como a própria literatura são encaradas com inteligência de autor e precisão de estilista. No romance, dois personagens - um escritor e sua assistente - mergulham em digressões a partir de uma única noite. O controle de Tezza sobre a ação (ou a falta dela) é exemplar, e o livro foi bem recebido, a despeito de toda a expectativa que o sucesso de "O Filho Eterno" havia provocado. O talento do romancista se impôs outra vez.
Agora Tezza se desprende um pouco mais no segundo livro depois do sucesso. O recém-lançado "Beatriz" é um volume de contos. Tezza costuma dizer que se acha magro como fabulista, o que poderia ser mortal na seara das narrativas breves, em que os personagens parecem valer menos do que as situações. De fato, o escritor só publicou um livro de contos em 1980. Ele também gosta de dizer que tem o hábito de percorrer os sebos do país atrás dos exemplares esgotados de "A Cidade Inventada", para tirá-los definitivamente de circulação.
Os sete contos de Beatriz mostram que os romances de Tezza e talvez até a sua "incapacidade de fabulista" emprestaram a essas histórias uma secura de estilo e andamento que lhes fizeram muito bem.
Foi-se o tempo em que o conto era o xodó dos editores latino-americanos. Hoje eles fogem dele quase tanto quanto os escritores. Ninguém mais começa a escrever com o conto. O iniciante já vai logo despejando um catatau de 500 páginas na mesa ou no e-mail do editor. Este finge que lê e joga o romance no lixo físico ou virtual.
Pois Tezza nos faz ter vontade de ler pequenas histórias. Ele parte até mesmo de um prólogo, em que explica o desenvolvimento dos personagens de um jeito tão instrutivo e divertido que não dá para largar.
A Beatriz do título é a mesma de "Um Erro Emocional", bem como Paulo Donetti, o escritor com quem ela contracena no romance. Ambos, romance e contos, estão ligados na origem - os textos curtos revelam estudos dos personagens, e "Um Erro Emocional" nasceu como conto. Tudo isso trabalhado e retrabalhado pela visão aguda, contemporânea e realista do autor.
Acabamos conhecendo Beatriz e Paulo tão bem que sentimos vontade de abrir o romance outra vez. Beatriz e Paulo são pura literatura, mas como que se materializam na nossa frente: ela, a revisora, a escrivã ou a simples leitora de olhos verdes. Ele, o escritor parecido com um monte de outros que se pode encontrar por aí - pulando de um evento literário para o outro, mastigando as frustrações, remoendo o talento perdido ou jamais encontrado.
Tezza olha para os dois com uma compaixão que não verte lágrimas, mas é feita de um par de olhos curiosos, capazes de absorver a realidade e devolvê-la num sorriso matreiro: a grande literatura.
"Beatriz"
Cristovão Tezza Record 144 págs., R$ 34,90 / AA+
AAA Excepcional / AA+ Alta qualidade / BBB Acima da média / BB+ Moderado / CCC Baixa qualidade / C Alto risco
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