O ESTADO
Florianópolis, 12 de novembro de 1989


LÚCIDO DESENCANTO DE UMA GERAÇÃO

A falta de perspectivas e o fracasso da classe média, segundo Tezza

Ricardo Carle

Aventuras Provisórias - Cristovão Tezza, Editora Mercado Aberto, 105 páginas.

"Mas não estou louco - aliás, o que me estraga é o excesso de lucidez". Esta reflexão, entre muitas do personagem e narrador de Aventuras Provisórias, sexto livro - quarto romance, premiado no concurso de literatura da Petrobrás - do catarinense, radicado em Curitiba, Cristovão Tezza resume a tensão da narrativa, da dissecação de um fracasso. A lucidez é um legado da geração e classe média emudecida pelos anos 70. O mergulho num desencanto que Tezza mantém não nas profundezas mas numa dolorosa flutuação. Nada mais pode ser envolvido e tudo se procura saber, racionalizar, entender afinal porque estamos perdidos. E recaímos de novo em dúvida, quando percebemos a Roda.
A Roda é um dos personagens de Aventuras Provisórias, aliás, apenas ela não é provisória, é viciosa, perene, insustentável e constantemente ressuscitada pela lucidez. Mesmo que se perceba que os ingênuos persistem, que existe na cegueira do freak Pablo uma grandeza que se apresenta às vezes como possível, a rotação implacável da Roda acaba por esmagar as ilusões. Conquanto tenha um respeito constrangido por Pablo - um personagem que já havia aparecido embrionário num romance anterior de Tezza, Ensaio da Paixão - o narrador não escapa à crueldade da sua consciência que percebe a encarnação do fracasso - "Pablo é um incapaz".
A relação do narrador - nominado apenas numa passagem como João - com seu amigo freak transcende a complacência. João inveja a capacidade de se esconder da realidade, o que em Pablo é natural. A grandeza é reforçada, ou melhor, constatada, pela condição peculiar em que Pablo ressurge, logo no início da história, na vida do narrador. É uma ressurreição: Pablo sai dos cárceres da ditadura, onde foi parar por um equívoco. Para um executor classe-média desencantado, que melhor situação para identificar um herói? A ditadura - "houve tempo em que eu pensava que o jeito era sair atirando nos milicos" - se acabava, as lutas se esvaziavam e os mártires minguaram.
Medíocre e sem identidade, o narrador apóia-se nos que o rodeiam - quatro mulheres, incluindo a mãe superprotetora e o cândido Pablo. Dóris é a intuição, uma convivência com horóscopo, incenso, arroz integral e Baghavad Gita. Mara é a intolerável razão, o freudianismo chato de plantão, a cultura acadêmica e distante. Glorinha talvez seja a salvação. A mãe, Jocasta.
Como João Gilberto Noll, Cristovão Tezza cria personagens solitários, embora este último teça para seu protagonista alguns laços a mais, ainda que tênues, com outros seres humanos. Também como Noll, e essa parece ser a tendência da literatura de ponta - e qualidade - no Brasil vibram as linhas nervosas e tensas do desencanto.
Segundo Tezza, seus primeiros escritos ainda apresentavam soluções de otimismo, linha que foi paulatinamente abandonada e definitivamente em Ensaio da Paixão. Nos três últimos romances, Trapo, Aventuras Provisórias e Juliano Pavollini - que será lançado pela Record no próximo ano - ele se tornou amargo. Segundo o autor, é a linha de análise do "fracasso da consciência - ou má- consciência - da classe-média". Tezza garante que não há nada de autobiográfico nisso, apesar de a narração na primeira pessoa tenha dominado essa fase. Embora não tenha sido voluntário, Tezza chama os três livros de "trilogia informal" sobre os aos 60-70 no Brasil.
No livro que escrever agora, A Suavidade do Vento, Tezza empreende um desafio. Ele volta para a narração na terceira pessoa, em que admite ter dificuldade "técnica", que, na verdade, envolve a necessidade da sinceridade. "Para escrever na terceira pessoa é preciso superar o grau autoritário e uma linguagem necessariamente objetiva", afirma, justificando que o uso da primeira pessoa não exige a simulação da subjetividade. Uma subjetividade essencial no texto do autor, que constrói com muita habilidade seus personagens, como o João de Aventuras Provisórias, em que a plausibilidade se mantém incólume e o cotidiano não se perde em astúcias desnecessárias, mas a armadilha da vida desenha-se em pontos quase tangíveis ao leitor.





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