JORNAL DA TARDE
Caderno de Sábado
São Paulo, 26 de maio de 1990


O idioma do romance (II)


Wilson Martins

Tendo no idioma romanesco a sua língua nativa, Cristovão Tezza, conforme observei a propósito de Trapo (1988), escreve o "romance do nosso tempo", o romance da vida cotidiana na cidade moderna, organismo psicológico em estado de permanente fluidez, que sentimos sem poder definir, sujeito às leis misteriosas do caos, cuja lógica interna e contraditória coerência constituem o tecido conectivo que o mantém unido, e, simultaneamente, produzem as bactérias que o destroem. Estamos em Curitiba, mas a Curitiba de Cristovão Tezza (Aventuras provisórias. Porto Alegre: Mercado Aberto, e Juliano Pavollini. Rio: Record, ambos de 1989) não é mais a Curitiba de Dalton Trevisan, assim como a Curitiba de Dalton Trevisan, quero dizer, a dele próprio e a dos seus leitores, já não era a cidade em que contemporaneamente começou a escrever na década de 40, para recuperar, no plano da arte literária, a cidade da sua infância e adolescência.

A Curitiba que ele "cantou" em página célebre desfizera-se, àquela altura, nas brumas do passado, era o tempo perdido que tratava de reconstituir, sendo noção de conhecimento comum o caráter nostálgico de sua literatura. Quando surgiram os seus primeiros cordéis (forma tipográfica, ela mesma, inegavelmente nostálgica e, de resto, correlata com a realidade provinciana da cidade a que se referem), Cristovão Tezza ainda não havia nascido, assim como ainda não havia nascido nos tempos heróicos da revista Joaquim. Para ele, tudo isso é história intelectual, é o passado arcaico que certamente encara com o sorriso... nostálgico de tolerante simpatia com que olhamos as fotografias antigas. Sendo 27 anos mais moço, ele pertence à geração pós-daltoniana (se a palavra for permitida, com o involutnário, mas inevitável, trocadilho que sugere), assimo como a sua Curitiba será, digamos, meio século posterior à de Dalton Trevisan, as diferenças urbanas, sociológicas e psicológicas não sendo apenas de volume e transformações materiais, mas de escala, situando-se, como ficou dito, nos domínios mais abstratos da mentalidade.
Contudo, a cidade em si mesma é apenas uma entidade reflexa na obra de Cristovão Tezza, malgrado freqüentes alusões orientadoras à paisagem urbana e seus pontos, por assim dizer, definidores e referenciais.

A passagem do tempo marca-se, às vezes, por diferenças imperceptíveis a olho nu: assim, os personagens de Juliano Pavollini mencionam "o Cometa", para indicar o estabelecimento que as gerações anteriores designavam como "a Cometa" - mudança psicológica de confeitaria para bar que talvez reflita as metamorfoses comerciais daquele trecho urbano (cuja melíflua mudança de nome para nomenclatura supostamente tradicional acrescentou-lhe o elemento de kitsch que faltava para selar-lhe a morte como rua elegante). Cristovão Tezza ainda responde a inconscientes reminiscências daltonianas em algumas topologias narrativas ligadas à zona da antiga estação ferroviária, mas o seu universo é antes o bairro da média e alta burguesia, na fronteira indecisa e mutável entre as antigas casas residenciais que subsistem e os novos prédios de apartamentos (em que, caracteristicamente, a mãe do narrador em Aventuras provisórias não se habitua). Também os inferninhos já se expandiram, alongando-se da venerável Praça Osório, com o seu relógio então eternamente parado (e marcando religiosamente a hora certa duas vezes por dia), para as ruas circunvizinhas, subindo pelas ladeiras adjacentes em espontânea metáfora montmartriana.
Os heróis de Cristovão Tezza vivem em outras topografias, estudando no Colégio Estadual da João Gualberto e freqüentando o mundo do Passeio Público, local ambíguo entre a inocência e o pecado, conforme as horas do dia. Assim se introduz na literatura o nobre Alto da Glória, outra região de fantasmas evanescentes desfeitos em neblina e invocados por meio de caríssimas reconstituiçõe arquitetônicas, mas também lugar de piedosos ritos religiosos hebdomadários, além dos jogos de futebol não menos rituais. A namorada de Juliano Pavollini ainda mora em casa térrea, aliás exposta aos assaltos, mas o apartamento é a forma normal de habitação dos neocuritibanos, com todas as correspondentes alterações no estilo de vida e de convivência.. Para os sociólogos, amadores e profissionais, que gostam de falar na "ascensão da classe média" (o que, se realmente ocorresse, criaria um vácuo assustador entre as classes baixas e altas), essa transformação de hábitos urbanos, urbanísticos e de urbanidade será mais um índice das diferenças que se estabeleceram entre os tempos do Nelsinho e os de Juliano Pavollini, embora o Vampiro e congêneres conhecessem por dentro, se assim me posso exprimir, o universo das Otílias e Dinorás, agora respondendo pelos nomes de Isabela e Dorotéia.

Cristovão Tezza pertence, pois, à nova geração literária, enquanto os seus personagens, como ele próprio, pertencem a novas gerações sociológicas. Como ficcionista, por exemplo, ele não recua diante dos palavrões (discretamente utilizados como técnica de autenticidade dialogal), recurso de que Dalton Trevisan jamais se utilizou, assinalando-se, com isso, a distância, literária e real, entre as duas Curitibas. Eles se identificam, entretanto, pelo aspecto intrinsecamente curitibano que é o humor irreverente, implacável e incoercível, humor ao mesmo tempo alegre e sarcástico. Essa característica da cidade ainda está por ser estudada, o que seria tanto mais interessante quanto contrasta com a tendência local para a gravidade de maneiras e o tropismo conservador, se não reacionário, sendo responsável, por outro lado, pelo erro de leitura mais comum entre os críticos de Dalton Trevisan, inclinados a encará-lo como espírito trágico, flagelo da sociedade ou carrasco dos semelhantes, sem perceber-lhe a vocação satírica, aliás irreprimível. O humor de Cristovão Tezza é mais descontraído, embora não menos cáustico e vingador. Ele é o observador, se não desinteressado, pelo menos resignado, dos ridículos típicos do nosso tempo, contra os quais se defende ou imuniza, justamente, pela visão corrosiva. Os subliteratos de pretensões insondáveis que infestam a vida local, os praticantes dos exercícios orientais de sabedoria que arruínam os casamentos e os estômagos, as mães neuróticas que infernizam a vida dos filhos, os revolucionários apocalípticos que fundam comunas agrícolas em lugares inacessíveis, tudo isso passa por suas páginas, para nada dizer dos desobramentos grotescos e trágicos em que acabou por se envolver a alma inocente de Juliano Pavollini.
Evitemos, para concluir,outro erro de visão, que o encarasse como autor de proporções e dimensões locais, como "escritor universalmente conhecido em Curitiba". Ainda verdolengo em tais ou tais aspectos, trata-se, desde já, de um grande nome na literatura brasileira contemporânea, porque, falando e escrevendo um novo "idioma de romance", torna automaticamente obsoletos numerosos outros.



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