Jornal Rascunho
Publicado em janeiro de 2017


Nossa humana condição


Vilma Costa

A tradutora, novo romance de Cristovão Tezza, é centrado na protagonista Beatriz e traz à tona um emaranhado de questões que podem levar a outra infinidade de leituras. Neste sentido, o leitor é convocado e seu papel é de fundamental importância para estabelecer os eixos de coerência e prioridades de abordagens.

Beatriz parecerá aos leitores uma velha conhecida, já que é personagem nos livros anteriores de Tezza: Um erro emocional (romance) e Beatriz (contos). Mas ao que tudo indica, a protagonista de A tradutora ganha vida própria e independência na medida em que sua construção passa por um radical aprofundamento. O texto, em si, é alinhavado por um narrador em terceira pessoa, onisciente e quase imperceptível, que tudo sabe, tudo vê, mas nem tudo revela. Isso porque as questões começam a ser suscitadas por sobreposições de discursos e pontos de vistas que se expressam em várias e conflituosas direções, a partir da protagonista.

O que conhecemos por “enredo” é bastante simples se comparado com a complexidade da protagonista que é o elemento que aglutina e dá sentido a todos os outros personagens.

Beatriz é uma jovem, com uma vida profissional ainda instável, que a lança em situações contraditórias e envolventes. É tradutora, revisora, professora de português, dedicada compulsivamente ao trabalho. Está às voltas com o rompimento de uma relação que vem se deteriorando com Paulo Donetti, escritor e professor, também já presente em livros anteriores de Tezza. O rompimento é formalizado ainda no primeiro capítulo. O parceiro faz de tudo para se manter no controle, o que efetivamente não acontece. Entretanto, durante todo livro ele surge questionando, lembrando situações a partir de suposições e narração de Beatriz. A repetição dessa presença sinaliza o quanto a relação ainda serve de referência. Enfim, “…ninguém se livra de alguém só pela força de vontade, as pessoas deixam rastros fundos na alma, na linguagem, nos gestos… vou arrastar até o fim da vida a sombra de Donetti”.

Outra personagem que é recorrente e, volta e meia, se manifesta é Bernadete, uma melhor amiga, com quem Beatriz partilha confidências ou pretende compartilhar. Serve também como interlocutora unilateral. Ou seja, ouve, faz breves comentários, mas pouco sabemos dela, a não ser que conhece muito bem a umbanda.

Chaves, o editor, cerca Beatriz com promessas de ascensão profissional e a envolve numa rede afetiva. De certa forma, compete com Donetti e aproveita-se do rompimento para ganhar terreno — Beatriz não oferece qualquer resistência.

Erik Höwes é um alemão executivo da Fifa, ex-jogador da seleção alemã que a contrata como intérprete. Os dois vivem poucos dias de intensa relação afetiva e sexual. Ela se vê seduzida pelas diferenças culturais e pessoais do alemão, talvez paixão, talvez “o fascínio do estrangeiro”. Por outro lado, ele se encanta com o Brasil, com a brasileira e com a umbanda.

Rafael é um aluno particular que, eventualmente, aparece para lembrar sua luta pela sobrevivência. Entremeado a tudo isso, com um toque de suspense, um admirador secreto segue deixando declarações de amor misturadas à sua correspondência, com um “EU TE AMO” de recorte de revistas. “…e o ‘eu te amo’ recortado pelo sequestrador imaginário ressurgiu, …nos envelopes que o porteiro entregava solícito, quem será ele? ou ela?

Fica claro o tempo cronológico em que se desenrolam os acontecimentos, principalmente, por dois aspectos. A cidade que se prepara para a Copa do Mundo e para receber a Fifa e a presença da tecnologia contemporânea: o celular que toca, que recebe e manda mensagens, o skype que permite a comunicação ao vivo de Curitiba com São Paulo, de Beatriz com Chaves e o plim-plim do e-mail que chega ao computador, quebrando o silêncio.

Grandes debates
As questões políticas são colocadas sob diferentes pontos de vistas. Isso cria mais um espaço para contextualização da abertura para grandes debates. Assim, através das ações e da voz de diferentes personagens esboça-se uma crítica aos governantes e à Fifa sobre o esquema de corrupção e outras irregularidades. “Já a FIFA, diria Donetti, só quer dinheiro mesmo, como nunca se derramou antes, e ele daria sua risada clássica.” Em outro momento, ensaia-se um contraponto sem exigência de resposta. Quase como especulação. “Mas você acha mesmo que não houve nenhum avanço social no período Lula? Em nenhuma área?… Aquilo estava chato e Beatriz bocejou sem disfarçar o gesto.” Uma pergunta solta que se perde pelo cansaço tedioso da protagonista.

Sentimentos e percepções são intercalados com fatos que se sucedem, com diálogos que se estabelecem sem marcação definida, com falas que não acontecem, mas só são sugeridas como lembranças, intenções e suposições do que os outros poderiam pensar ou falar. Tudo isso entrecortado pelo discurso de um texto filosófico bastante polêmico do catalão Felip T. Xaveste que Beatriz está compulsivamente traduzindo.

Muitas vezes, tudo isso enche uma página, num texto corrido sem estabelecimento de hierarquia do que é narrado com o que é dialogado, do que é pensado com o que é evocação de desejo ou de memória. O texto em itálico e fragmentos entre parentes oferecem uma leve noção das diferenças de planos dos discursos.

Neste sentido, a narrativa segue focada mais na personagem do que propriamente na ação, aproximando-se mais de algumas narrativas cinematográficas do que de narrativas literárias tradicionais. Marca muito presente na literatura contemporânea vem sendo a absorção de elementos de outras linguagens. Podemos ver aqui isso, bem claro, na tentativa de simultaneidade das ações, na irreverência de fragmentos de memória e percepções, nas alternâncias temporais dos acontecimentos e na maneira performática com que os personagens se apresentam. Beatriz lembrou: “…agora livre sem retorno, o que encaixa com a melancolia momentânea daqueles passos solitários… num sentido maior que só Deus, o diretor, domina”. Fica a questão: quem é o diretor dessa película? Deus no sentido literal e religioso? O narrador, o escritor? O leitor, o autor?

Mais que imagens sequenciais e lineares, visualizamos fotogramas que se sobrepõem numa sintaxe muito delicada e elaborada. De forma que, como observa Beatriz: “nesses últimos quatro dias, a memória nem memória é, eu me misturo com as coisas que lembro — você entra no filme, uma vez Donetti sussurrou, uma coisa muito louca —…

A memória e o seu funcionamento no texto têm um destaque a partir da epígrafe de Jane Austen, que abre o livro: “Se há uma faculdade de nossa natureza que pode ser considerada mais admirável que as demais, de fato penso que é a memória”. Dentro dessa perspectiva, há uma ênfase na memória tanto quanto elemento do discurso quanto da construção da personagem. Austen observa, ainda, se tratar de uma espécie de poder incompreensível e particular que faz com que ela se desdobre em diferentes níveis e com isso ganhe força. A memória que nem memória é, de Beatriz, com esta se mistura: presente e passado, sexualidade e trabalho, pensamentos e desejos se diluem, imaginação e realidade não se distinguem com nitidez, assim como sua subjetividade se vê muitas vezes misturada com seus duplos, seus outros. Austen conclui: “A memória é às vezes tão retentiva, tão durável, tão obediente — noutras tão desconcertada e tão frágil — e noutras ainda tão tirânica, tão indomável!”.

E são todas essas possibilidades que assaltam a personagem e são trabalhadas no texto, como se só o poderoso diretor de um filme fosse capaz de manipular. São todas essas multiplicidades de sentidos, entre ações, sensações, costuradas por palavras e fragmentos de memória, que lançam, não apenas a protagonista, mas todos nós leitores, na avalanche de conflitos, limitações e grandiosidades de nossa condição humana, demasiada humana, sem idealizações, mitificações ou subterfúgios.


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