Folha de S.Paulo
Publicado em 22/10/2016


Cristovão Tezza cria bom relato
de personagens egocêntricos



Vanessa Ferrari

Há três personagens importantes que compõem "A Tradutora", novo romance de Cristovão Tezza. A começar por Beatriz, a professora que se arrisca em uma tradução para pagar as contas.

Afetivamente, ela circula na seara das mulheres que buscam a figura masculina para dar sentido à sua existência. Atrelada a um escritor egocêntrico, ela divide seu tempo entre trocar confidências com a amiga, achar um modo de romper o namoro e traduzir Felipe T. Xaveste, um "catalão brilhante", segundo o editor.

Escrito em típico ensaiês, repleto de "não obstantes", "relações epistemológicas e inextricáveis" e "pressupostos", os trechos do ensaio dão o tom da incomunicabilidade entre os personagens e anunciam o que está por vir.

Paulo Donetti, o namorado, está prestes a escrever um "romance brilhante", que será "uma fusão de eus e eles", uma "apreensão do caos". Enquanto não tem sua genialidade concretizada, e ciente de que sua relação está por um fio, ele implora a Beatriz: "Não me deixe, preciso da minha leitora pela última vez".

Ainda há Erik Höwes, executivo da Fifa que chega ao Brasil para inspecionar os preparativos da Copa. É um Mr. Grey –não pelo apetite erótico, mas pela projeção de Beatriz, que não o enxerga como um típico gringo que acha tudo "very interesting", mas como um homem misterioso.

Há na obra um grande desafio narrativo que Tezza realiza bem. A história acontece aqui e agora, volta e avança no tempo. E os narradores são muitos. Em um instante não é mais Beatriz quem fala, e sim o namorado, ou o pulha do editor, ou o narrador em terceira pessoa. Trata-se de uma estrutura complexa, que teria tudo para descarrilhar, mas segue firme até o fim.

O mérito do livro, no entanto, é o grande desafio do leitor. Não é um livro fácil, tanto pela narrativa como por construir tipos sociais que não causam empatia – não me refiro à ausência de personagens de boa índole, mas por retratar as relações de superfície plana. Há no romance a modernidade líquida de que fala Zygmunt Bauman, em que tudo evapora, está fragmentado e perde o sentido muito antes de se consolidar.

Não é sobre o caos, portanto, ou sobre a incomunicabilidade que a história se debruça. A inovação – e isso está muito bem retratado – é que, se antes havia alguma contenção para o sujeito egocêntrico, hoje ele saiu da clandestinidade, veste roupa de gala, manda beijinho e é ovacionado pela multidão. 


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