Há romances que terminam onde acabam. Outros se reproduzem em histórias paralelas, fazem cruzamento com outros livros, outras ideias. E nem precisa ser obra-prima para uma inquietação se multiplicar. É o caso de Um erro emocional, de Cristóvão Tezza, autor vencedor do Jabuti e do Portugal Telecom 2008, entre outras premiações, com O filho eterno. Neste aqui não há uma grande história, nada acontece de muito impactante, memorável ou surpreendente. Poucos diálogos. Uma confusa meada mental se desenrola entre um escritor premiado e a sua eleita – a “leitora perfeita”, a quem o autor pede para ler seus manuscritos. Um leitor-fêmea. Alguém se lembrou agora de Julio Cortázar, em O jogo da amarelinha, inevitavelmente. O erro emocional do título explica-se antes de o romance ganhar páginas: a súbita paixão do autor por sua eleita leitora.
– Você pode me ler? – pergunta Donetti a Beatriz. Ler o manuscrito, sim, mas quanta coisa implícita. Ele poderia ter perguntado: “Você pode ler meu romance?” Mas optou por “me ler”. Me decifrar? Me querer? A escolha por uma determinada leitora (e não outra) se inscreve na escolha por uma mulher por quem, antecipadamente ele já poderia supor, se apaixonaria... À leitora, no caso o objeto apaixonante, todo o poder do mundo; do outro lado da página, está o escritor, fragilizado pela paixão. Eis como o narrador posiciona as peças neste tabuleiro-ficção.
São todos eles, escritores, uns “animais agonizantes”, pensa o autor de si mesmo. Agonizam numa solidão medonha, a um passo do final da linha. Donetti precisa “desesperadamente de alguém”, está em queda livre. Ele e o mundo não se dão bem. Não consegue viver fora do papel: “Quando escrevo, não me perco – o difícil é colocar a cabeça para fora, sair do papel, ocupar um espaço, tocar em alguém”.
Tocar em alguém. Sair do papel. As peças aqui só se movimentam com muita dificuldade. Beatriz, a leitora, vive na dimensão da vida real. Para um tocar no outro, ela precisa pisar na ficção, no papel – o que acaba acontecendo, pois a leitura transforma a escrita, à medida que as sugestões de Beatriz são incorporadas ao manuscrito. Os papéis se confundem. Um vai entrando na zona de confluência mental do outro e ambos se misturam em uma intimidade intelectual que só lentamente deverá levar ao toque, ao corpo. Uma respiração muito próxima da outra, uma total falta de pressa em devassar a alma, o passado, os gostos, os traumas um do outro, pois a leitura precisa de vagar, e a letra é indócil.
“Beatriz enfim ergueu os olhos atentos do papel amarelo – ela acabava de ler a expressão o desejo é uma sombra - que se autodestruía pela sequência ridícula - que carregamos no bolso, e ela sentiu ganas de meter o lápis ali e deixar apenas a primeira parte, o desejo é uma sombra”.
É bonito este trabalho de Cristóvão Tezza, quase um bailado mental, um jogo de medo e desejo, que deixa supor muito mais do que assinala. Depois de finalizada a leitura e a reconstrução do manuscrito, o que virá (quanto ao futuro?) não se sabe. Talvez a leitora não queira viver na ficção, pois, como narrador enfatiza, e não é segredo pra ninguém: “são sempre as coisas desagradáveis que dão boa literatura”. Ao mesmo tempo, a vida real, assim como o passado de cada um, com os quais os personagens tentam conviver sem rusgas, está cheio de “sombras, que escurecem o mundo sem ocupá-lo”. E até o amor é suspeito de estar envolto nas mesmas sombras que se repetem nesta história – “o amor é um sentimento necessariamente povoado de sombras. Ou será a paixão que é sombria?” Ah, as respostas são tão improváveis quanto o futuro deste casal.
TRECHOS
“Talvez dizer agora a Beatriz, nitidamente, para que ela não se engane sobre o que vê: não, eu não quero dar sentido ao mundo, eu não quero juntar pedaço de coisa nenhuma, o que eu quero é tirar sentido do mundo, é justo o contrário, eu quero desmontar esse senso de ordem até a última rosca, mas também isso restava incoerente, o mero impulso irracional disfarçado de atitude ou de olhar crítico (...)”
Um erro emocional
Cristovão Tezza
Editora Record
Claudia Nina nasceu no Rio de Janeiro, onde mora. É autora de A palava usurpada (Editora da PUC-RS), sobre a obra de Clarice Lispector, tradução de sua tese de doutorado pela Universidade de Utrecht (Holanda), e de A literatura nos jornais (Summus). Sua produção infantil vai ser lançada em breve.