Ao pensar num desfecho para A Família Soprano, o criador da série David Chase fez o que quis e explicou depois que, da impossibilidade de criar um último episódio capaz de agradar o público inteiro, resolveu não se preocupar com o público. Sentou e escreveu a história que achava mais adequada.
A lógica de Chase talvez faça sentido para Cristovão Tezza. O público leitor de O Filho Eterno pode desejar mais do mesmo e esperar que o autor faça outro romance tão autobiográfico quanto o anterior, ou tão emocionante quanto.
Tezza diz que descobriu a existência do leitor quando se dispôs a escrever para jornal. Como cronista da Gazeta do Povo, publicado às terças-feiras, viu que a resposta do público do diário é rápida – muito diferente do de um livro. Com a descoberta do leitor, veio também alguma ansiedade, pois existem limitações que o colunista admite para não criar conflitos desnecessários com quem o lê. Ele não vai, por exemplo, descrever uma cena de sexo explícito no jornal. Restrição que não existe na literatura.
Não há sexo em Um Erro Emocional, novo romance de Tezza que chega hoje às livrarias. Mas há um bocado de pensamentos explícitos. Da preocupação de suceder o alvoroço criado por O Filho Eterno, o escritor deu uma de David Chase: fez o livro que quis e, durante a elaboração, não pensou no público (embora tenha admitido que, agora, com o romance sendo lançado, é inevitável pensar na recepção).
Exatamente por não querer adular a plateia, Um Erro Emocional é fascinante. Parece até que a narrativa considera, sim, a existência de um leitor, mas apenas para provocá-lo, para colocá-lo contra a parede. No começo, não fica muito claro o que se passa. Quem fala o quê e de quem são os pensamentos destrinchados no papel, quando os personagens estão conversando ou apenas pensando em algo para dizer.
O texto é rápido como um raciocínio pode ser. É o que se chama de “fluxo de consciência” na literatura – tem-se acesso ao que se passa na cabeça do personagem ainda que isso não faça muito sentido. A dificuldade imposta pela narrativa no início é feita da mistura compacta de pensamentos, falas e intervenções do narrador. Os capítulos são curtos e, depois dos três primeiros, o estranhamento deve diminuir. É quando ocorre o ponto de virada: dali para frente, fica difícil largá-lo.
A história fala de um escritor importante com dificuldades para trabalhar que se apaixona por uma jovem formada em Letras, fato que acontece durante um jantar. A ação começa no dia seguinte, quando Paulo Donetti bate na porta da casa de Beatriz para confessar o que sente. A diferença de idade entre eles não é grande – ao menos não para os padrões vigentes –, mas parece haver um longo caminho que os separa. E é essa distância que eles tentarão percorrer ao longo da conversa, sempre se aproximando dois passos para se afastar um em seguida.
Dizer que a história se passa em tempo real não seria preciso. Tezza consegue estender os instantes de uma maneira incrível. Você acompanha o diálogo dos personagens, entra na cabeça deles, dá passeios demorados e volta à ação. É como visitar realidades paralelas durante períodos longos e descobrir que o tempo transcorrido na vida vivida foi de um segundo ou dois.
Donde o fascínio de Um Erro Emocional. O mesmo narrador que nos confunde nas páginas iniciais – porque parece intrometido demais ou exigente demais – não demora a nos ganhar. O que desnorteava no início da história era a situação desconhecida – posição ocupada também por Donetti e Beatriz.
É evidente que ela admira o escritor, assim como ele deixa claro que a deseja. Mas essas informações, que ambos têm, não os impedem de conversar como se tateassem no escuro. Há uma tensão entre os dois, mas ela não é sexual. Durante o diálogo, não há nenhum flerte. A tensão é mais afetiva do que erótica – se é que algo assim existe.
O casal se perde em devaneios de experiências anteriores ao mesmo tempo em que deseja uma nova história, um novo amor. “A memória queima”, diz a epígrafe de Um Erro Emocional, “Longe dela, brilha o deserto”. É um texto tirado – um pouco diferente – de uma obra de Donetti. Distante da memória, não há nada. Se ela queima, não se pode tocá-la com as mãos nuas.
O que motiva os personagens de Tezza é o desejo de uma proteção que permita a eles pegar as memórias e colocá-las num lugar onde não machuquem tanto.