FOLHA DE S.PAULO
Caderno Ilustrada
São Paulo, 16 de outubro de 2010

Costurado de forma fina, livro traz
"erros" necessários da vida

Noemi Jaffe

Como o Ulisses de Homero, que, em queda livre pelo penhasco da história, se transformou no Bloom de James Joyce, a literatura atual traz vários exemplos de heróis decaídos, afortunadamente banais.

É o caso de uma das protagonistas do novo romance de Cristovão Tezza, "Um Erro Emocional", em que a Beatriz etérea de Dante toma agora vinho Concha y Toro, flagra o ex-marido com uma prostituta em um hotel barato e dá aulas de português.

Donetti, o protagonista, um escritor em crise profissional e existencial, tem também um amigo de nome não menos significativo: Cássio. Não se trata de interpretacionismo barato. Tudo isso se explicita no romance, que não deixa escapar essas "coincidências" e cuja narrativa é premiada por uma autoconsciência densa e incontornável.

O romance inteiro narra somente algumas horas de conversa entre Donetti e Beatriz, conversa em que, mais do que as poucas falas, importam sobretudo os subtextos e os pensamentos que cada um deles associa àquilo que ouve e diz.

Numa conversa de sedução de um homem e uma mulher entre 30 e 40 anos, inteligentes e talentosos, com experiências frustradas de relacionamentos anteriores, certamente o que menos interessa é o que se diz; acima disso está a maneira como as coisas são ditas e o que se oculta em cada promessa de frase. Assim, em "uma delícia essa pizza", se esconde a "felicidade bruta de um dia atormentado", "um tom de voz coloquial, uma constatação sem ênfase".

Dessa forma se desenvolvem as poucas falas do romance, todas com grande carga de consciência, contenção e elaboração mental, deixando escapar um ou outro lapso, rapidamente percebidos pelo protagonista psicanalisado.

Tudo isso costurado de forma fina e intrincada, com situações facilmente identificáveis pelos leitores (PT ou PSDB, papel ou computador, falta de dinheiro e desejo de conforto), mas sem escorregar para apelos fáceis ou excessos subjetivos.

Um livro cheio de "erros": no título, nas dificuldades da fala, no passado, no presente, na Beatriz decaída. Mas erros necessários; erros sem os quais a vida fica certa demais, chata demais.

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