Valor Econômico
São Paulo, 3 de dezembro de 2010


Sobre erros, não ditos, buscas e redenção

Eliana Cardoso

Poucos escritores cuidam de seu texto com o requinte de Cristovão Tezza. Palavras exatas. Ritmo sem falhas. Em Um Erro Emocional (Record, 2010), Paulo Donetti, escritor famoso, aparece com uma garrafa de vinho na porta do apartamento de Beatriz - leitora e admiradora que conhecera na véspera num jantar a três. Eu me apaixonei por você, ele diz. A trama intimista dura uma noite. Tempo para algumas horas de conversa. Mas o que importa são os pensamentos que cada um deles associa ao que ouve e diz. Nada acontece. Um falso romance realista, define o autor.

Donetti, o protagonista e escritor em crise, tem um amigo-inimigo de nome Cássio, a terceira presença no jantar da véspera. Cássio, se você se lembra, é o nome do tenente de Otelo na peça de Shakespeare. E, não por coincidência, o pai de Donetti é negro, como o mouro de Veneza. Sendo filho do mouro, Donetti não poderia ser Iago. Mas, como Iago, tem ciúmes de Cássio e inveja do pai, um homem imponente. E, como Otelo, sofre de certas inseguranças, pois a dúvida que lhe martela a cabeça é sobre a paternidade do único filho que tivera com Cláudia, a ex-mulher, agora casada com um homem gentil. Seria mesmo filho dele? E contava os meses nos dedos da mão.

Voltando a Cássio, vale lembrar que existiu também o senador romano, Cassius Longinus, que promoveu o complô para assassinar Júlio César. Cassius, Brutus e Judas formam o trio de traidores mais famosos da história. No livro de Tezza, Cássio entra na vida de Donetti como o pupilo que idolatra o mestre. Eles passavam juntos tanto tempo que Antonia, outra ex-mulher, lhe perguntara se tinham um caso, abrindo o fosso no qual o casamento se afundaria. Sempre inseguro, Donetti chega a imaginar que Antonia e Cássio se amassem e ele tivesse sido vítima de um golpe.

Com medo de perder o amigo, Donetti o apresentara a uma editora, que o aceitara. Mais tarde, confessaria ao analista que naquela ocasião experimentara um breve travo na boca. A rivalidade acirrada, no jantar com Cássio, cada palavra de Beatriz a seu respeito era uma dádiva, alimentando carinhosamente o animal arisco que ela via pela primeira vez ao vivo, e pelo qual ele foi esquecendo o inimigo Cássio tão profunda e completamente que chegava a tocar o desprezo.

No diálogo entre Donetti e Beatriz, as situações são sempre triangulares ou ainda mais complicadas. Eu mereço Beatriz, ele diria a Deus [...]. Eu a arranquei dos braços de Cássio, lutei por ela e estou aqui; na minha lança, ainda escorre o sangue mouro do inimigo. (Do mouro pai? Ou de Cássio, rival mais jovem?, pergunta o leitor.)

Inteligentes e sofisticados, Donetti e Beatriz falam pouco e pensam muito. Entre palavras escassas e silêncios intermitentes, ambos, em pensamento, se analisam, visitam obsessivamente experiências da infância, repassam fracassos anteriores e sonhos suspensos, rodando o disco arranhado da memória. Depois das muitas taças que Donetti encheu e esvaziou, o leitor se pergunta quando a garrafa de vinho chegará ao fim. Para seu alívio e o de Donetti, Beatriz revela a existência de mais três garrafas de Concha y Toro na despensa.

Por detrás do interminável jogo de sedução, em que apenas risos revelam o desejo, muito se passa na cabeça de cada um. O homem anseia por intimidade, mas encontra entraves no caminho. Beatriz, que poderia levá-lo ao paraíso, não o faz. Pelo menos nas páginas desse livro. Talvez porque, como ela teme, seja de fato travada. Ele racionaliza os próprios silêncios: Uma história assim só pode ser contada na cama, os dois nus, depois de um prolongado amor físico que fosse abrindo as fronteiras todas da intimidade mental até que estivessem realmente próximos, é como se levássemos as mulheres para a cama apenas para conversar melhor com elas, o que queremos mesmo é devassar a alma, o corpo é só a porta de entrada. Pobre Donetti! Permanece trancado dentro de si mesmo até que, na última linha do livro, estende a mão para tocá-la (finalmente!).

As relações em Um Erro Emocional envolvem sempre mais alguém além das duas personagens que conversam. Na sua cabeça, Beatriz reproduz para a amiga Doralice o que se passa entre ela e Donetti. Na dele, estão o analista, o pai, o rival e a outra Beatriz.

O contraste com O Filho Eterno (Record, 2008, sétima edição e grande sucesso de Tezza) é evidente. No Filho, a relação é entre duas pessoas: o pai e o filho. Ou entre o pai e ele mesmo. As mulheres - a mãe e a irmã de Felipe, o menino com síndrome de Down - praticamente desaparecem na viagem de conhecimento do pai. Um Erro Emocional não tem a mesma força da experiência sincera e convincente de O Filho Eterno. São dois livros muito diferentes, como aponta o próprio autor, ao enfatizar a inovação linguística do novo romance, enquanto classifica o livro anterior como brutalmente autobiográfico.

O Filho Eterno é uma autobiografia escrita na terceira pessoa. O pai de Felipe não tem nome. A narração sem eu e os diálogos raros mergulham o leitor no cotidiano do protagonista, escritor que vive em Curitiba. No começo do livro, o Cristovão Tezza ficcional está no hospital e espera para conhecer seu filho, nascido horas antes. A criança que chega traz as características da síndrome de Down. O pai deseja a morte do filho. Como a vida lhe nega essa saída, ele busca outras. Entrelaçada aos eventos posteriores ao nascimento de Felipe está a trajetória anterior do pai: os episódios da juventude, estudos em Coimbra, emprego clandestino na Alemanha, o curso de letras...

À medida que o tempo com o filho avança, o sentimento inicial se transforma. O pai se assombra quando um incidente lhe mostra o próprio coração. Só descobriu a dependência que sentia do filho no dia em que Felipe desapareceu pela primeira vez […] O mesmo filho que ele desejou morto assim que nasceu, e que agora, pela ausência, parece matá-lo.

Existe redenção. Ela não é simples nem acontece de repente, mas, no final do livro, o pai assiste a uma partida do Atlético Paranaense ao lado do filho, torcedor fanático do time. O jogo começa mais uma vez. Nenhum dos dois tem a mínima ideia de como vai acabar, e isso é muito bom.

A redenção sutil me lembra aquela construída por Kenzaburo Oe em Uma Questão Pessoal (tradução de Shintaro Hayashi, Companhia das Letras, 2003). Como em O Filho Eterno, também em Uma Questão Pessoal o pai deseja a morte do filho que nasceu deficiente. O livro começa com o jovem Bird caminhando pelas ruas de Tóquio, enquanto sua mulher enfrenta um parto difícil na maternidade. Apesar do apelido, Bird é um japonês comum. Quando a criança nasce com uma hérnia no cérebro, Bird entra em pânico. Tudo o que quer é escapar do monstruoso bebê.

O filho de Kenzaburo Oe também nasceu com dano cerebral e seu desejo foi abandonar a criança à própria sorte e esperar que morresse logo. Mas, depois de fazer uma reportagem com os sobreviventes da explosão da bomba atômica em Hiroshima, quando entrevistou vários médicos, sentiu-se envergonhado por querer escapar de seu drama familiar. Permaneceu ao lado do filho e escreveu o romance, que também contém redenção nas páginas finais. Bird aguardou as mulheres, que, conversando animadamente, se aproximavam com a criança, e espiou o rosto do filho […]. Queria ver o próprio rosto refletido nos olhos do menino.

Ao contrário de Uma Questão Pessoal de Oe - que é um romance - O Filho Eterno de Tezza é um relato autobiográfico, que se abre a reflexões mais objetivas. Agora, com Um Erro Emocional, Tezza inaugura outra experiência e já deixa a leitora curiosa a respeito do livro que virá a seguir.


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